A Convenção de Nova Iorque e o Direito Interno Português

Nuno Salazar Casanova.

17/9/2009 Colecção La Convención de Nueva York y el Derecho Interno Portugués


1. Introdução

Em 18 de Outubro de 1994, e na sequência da sua aprovação, para ratificação, efectuada através da Resolução da Assembleia da República n.º 37/94, de 10 de Março, e posterior ratificação, através de Decreto do Presidente da República n.º 52/94([1]), de 8 de Julho, Portugal aderiu - através do depósito do respectivo instrumento - à Convenção de Nova Iorque, de 10 de Junho de 1958, sobre o Reconhecimento e a Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras (“a Convenção”).

A Convenção, em especial no seu artigo V, estabelece quais os únicos fundamentos que podem ser opostos pelos Estados Contratantes ao reconhecimento e execução de sentenças arbitrais proferidas noutros Estados([2]).

Poderá assim parecer, numa primeira abordagem, que o Direito interno dos Estados Contratantes se torna irrelevante para efeitos de aferir da existência de fundamentos substantivos para a recusa do reconhecimento e execução de sentenças arbitrais proferidas em outros Estados Contratantes, embora seja a lei interna que determine a tramitação e demais normas adjectivas do respectivo processo([3]).

Porém, em diversas situações, o Direito interno do Estado Contratante onde se pretende reconhecer ou executar uma sentença arbitral, assume particular relevo, conforme se verá.

2. Capacidade das partes

Desde logo, a alínea a) do artigo V da Convenção estabelece que um Estado Contratante pode recusar o reconhecimento ou execução de uma sentença arbitral, caso seja fornecida prova da incapacidade das partes outorgantes da convenção arbitral, nos termos da lei que lhes é aplicável, ou da invalidade da referida convenção ao abrigo da lei a que as partes a sujeitaram ou, no caso de omissão quanto à lei aplicável, ao abrigo da lei do país em que for proferida a sentença.

Assim, embora proferida noutro Estado Contratante, a lei aplicável à convenção arbitral pode ser a lei do Estado onde se pretende reconhecer o executar a decisão (quer por ter sido a lei designada pelas partes, quer por decorrer das normas de Direito Internacional Privado).

Caso as partes tenham sujeitado a convenção arbitral ou o litígio à lei do Estado Contratante onde posteriormente a venham a invocar para reconhecimento ou execução, dificilmente poderão desconhecer a relevância do Direito interno desse Estado, designadamente para efeitos de incapacidade ou invalidade da Convenção (al. a) do art. V).

Poderá, no entanto, constituir uma surpresa para as partes, a lei que o tribunal de execução venha a entender aplicável à capacidade das partes, já que esta - para efeitos de recusa com base na incapacidade das partes - será dirimida em função das normas de Direito Internacional Privado do Estado Contratante onde se venha a invocar a sentença arbitral, independentemente de qual a lei designada pelas partes.

No que toca à capacidade das partes, assume aliás particular importância a idade estabelecida pelos diversos Estados Contratantes quanto à maioridade. Em Portugal, por regra, os menores carecem de capacidade para o exercício de direitos([4]), sendo a maioridade atingida aos 18 anos.

De acordo com a norma de conflitos adoptada pela lei Portuguesa, e salvo algumas restrições, a capacidade das pessoas singulares é regulada pela lei pessoal dos respectivos sujeitos([5]). Significa isto que, v.g., a execução de uma sentença arbitral que condene um cidadão Português menor de dezoito anos no âmbito de uma acção de responsabilidade civil extracontratual, poderá vir a ser recusada com fundamento na incapacidade do menor, ainda que, de acordo com a lei aplicável ao litígio, designada pelas partes ou onde foi proferida a sentença, a maioridade se atinja ao dezasseis anos.

Sendo certo que a convenção de arbitragem celebrada por menores será seguramente uma situação incomum, o mesmo não se dirá de convenções de arbitragem celebradas por pessoas colectivas, nomeadamente sociedades comerciais, onde se podem suscitar problemas de incapacidade ao abrigo da lei Portuguesa([6]). Embora a capacidade das pessoas colectivas não se confunda com a respectiva forma de obrigar, i.e., o modo de vinculação da sociedade pelos actos dos seus representantes, o art. V da Convenção tem sido interpretado extensivamente, no sentido de que a incapacidade ali referida inclui a ausência de poderes de representação([7]), a incapacidade de demandar e ser demandado e a invalidade da procuração forense.

Não obstante, a solução consagrada na lei Portuguesa protege claramente os terceiros contratantes, uma vez que estabelece que os actos praticados pelos gerentes e administradores, em nome da sociedade e dentro dos poderes que a lei lhes confere, vinculam-na para com terceiros, não obstante as limitações constantes do contrato de sociedade ou resultantes de deliberações dos accionistas, mesmo que tais limitações estejam publicadas([8]).

3. Da força obrigatória da sentença

Nos termos da alínea e) do artigo V da Convenção, um Estado Contratante pode recusar o reconhecimento ou execução de uma sentença arbitral, caso seja fornecida prova de que a sentença ainda não se tornou obrigatória para as partes, foi anulada ou suspensa por uma autoridade competente do país em que, ou segundo a lei do qual, a sentença foi proferida.

Sendo a sentença proferida no Estado Contratante onde se pretende reconhecer ou executá-la, a Convenção não é aplicável segundo o seu artigo I, salvo se aquele Estado a não considerar uma sentença nacional (vide n.º 1 do artigo I da Convenção, in fine). Um Estado poderá não considerar nacional uma sentença arbitral proferida no seu território quando a legislação desse Estado permita que as partes apliquem uma lei de arbitragem estrangeira a uma processo arbitral a ter lugar naquele Estado([9]). Tal não é, porém, o caso de Portugal, já que a lei de arbitragem Portuguesa, “Lei da Arbitragem Voluntária”([10]) estabelece que aquele diploma se aplica às arbitragens que tenham lugar em território nacional (art. 37.º). Deste modo, se a arbitragem tiver lugar num país estrangeiro que aceite submetê-la à lei de arbitragem Portuguesa, os Tribunais Portugueses consideram-se, não obstante, incompetentes para a respectiva acção de anulação([11]), podendo inclusivamente surgir um conflito negativo de competência.

Se, porém, a sentença arbitral foi proferida noutro Estado, Portugal recusará a sua execução se a mesma não se tiver tornado obrigatória para as partes. Nos termos do Código de Processo Civil Português, é fundamento para a impugnação da revisão e confirmação de sentenças arbitrais estrangeiras o facto de a sentença não ter transitado em julgado segundo a lei do país em que foi proferida (al. b) do art. 1096.º). Assim, estando pendente recurso no país de origem, com ou sem efeito suspensivo, a sentença arbitral estrangeira não será reconhecida([12]). A definição de trânsito em julgado dependerá, no entanto, da lei do país de origem. Desse modo, a pendência de uma acção de anulação no país de origem pode não obstar ao trânsito em julgado dessa decisão, nomeadamente para os países que, como Portugal, distingam a dupla via de reacção recurso/acção de anulação, em que o recurso obsta ao trânsito em julgado da decisão recorrida, e a acção de anulação não.

Claro que, anulada ou suspensa a sentença arbitral pelos tribunais do país de origem, a sentença estrangeira não deve ser revista e confirmada em Portugal, na medida em que a sentença judicial de anulação ou suspensão for ela própria reconhecida em Portugal, após ser revista e confirmada. Não se tratariam de decisões contraditórias sobre a mesma pretensão([13]), porquanto o objecto da acção de anulação não é o mesmo da sentença arbitral; pelo contrário, o objecto da acção de anulação é a própria validade da decisão arbitral. De outro modo, a sentença de anulação ou suspensão não seria verdadeiramente eficaz em Portugal([14]).

4. Da arbitrabilidade do litígio

Nos termos do n.º 2 do artigo V da Convenção, poderão igualmente ser recusados o reconhecimento e a execução de uma sentença arbitral se a autoridade competente do país em que o reconhecimento e a execução foram pedidos constatar que, de acordo com a lei desse país, o objecto de litígio não é susceptível de ser resolvido por via arbitral ou que o reconhecimento ou a execução da sentença são contrários à ordem pública desse país.

Estes dois fundamentos diferem dos restantes supra mencionados, desde logo por serem os únicos que podem ser conhecidos ex officio pelo Estado onde se pretende reconhecer ou executar a sentença arbitral. Todos os restantes fundamentos terão de ser invocados pela parte contra a qual for invocada a sentença.

O Direito interno do Estado onde se pretende reconhecer e executar a sentença arbitral é, portanto, igualmente relevante no que toca à arbitrabilidade do litígio.

A Lei de Arbitragem Voluntária Portuguesa estabelece que apenas são arbitráveis os litígios respeitantes a direitos disponíveis (art. 1.º, n.º 1). Esta norma é coerente com o disposto no Código Civil e no Código de Processo Civil Português relativamente à confissão e transacção, os quais não podem ter lugar quanto a direitos de que as partes não podem dispor (cfr. art. 353.º e 1249.º do Código Civil e art. 299.º do Código de Processo Civil).

O critério da disponibilidade, seguido por diversas legislações, não se confunde com o da patrimonialidade. Por um lado, nem todos os direitos de natureza patrimonial são disponíveis([15]), por outro,  nem todos os direitos disponíveis têm natureza patrimonial([16]).

No que toca à arbitragem com o Estado ou outras entidades públicas Portuguesas, a Lei de Arbitragem Voluntária estabelece que o Estado e outras pessoas colectivas de direito público podem celebrar convenções de arbitragem, se para tanto forem autorizadas por lei especial ou se elas tiverem por objecto litígios respeitantes a relações de direito privado (n.º 4 do art. 1.º). Desse modo, quando o litígio respeita a direito civil/privado (nomeadamente quando se tratem de actos de gestão privada), não existem restrições específicas à arbitragem com o Estado ou outras pessoas colectivas de direito público. Quanto a litígios relativos a relações jurídicas administrativas, o actual Código de Processo nos Tribunais Administrativos estabelece que, sem prejuízo do disposto em lei especial, pode ser constituído tribunal arbitral para o julgamento de questões respeitantes a contratos administrativos, incluindo a apreciação de actos administrativos relativos à respectiva execução, questões de responsabilidade civil extracontratual, incluindo a efectivação do direito de regresso e questões relativas a actos administrativos que possam ser revogados sem fundamento na sua invalidade (art. 180.º).

5. Ordem pública internacional

Como se disse, nos termos da Convenção é igualmente fundamento de recusa de reconhecimento e execução de uma sentença arbitral a constatação pela a autoridade competente do país em que o reconhecimento e a execução foram pedidos de que o reconhecimento ou a execução da sentença são contrários à ordem pública desse país.

Trata-se de um fundamento tradicional de recusa de execução de sentenças estrangeiras, aliás um dos poucos admitidos pelo Regulamento (CE) 44/2001, de 22 de Dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial na Comunidade Europeia (art. 34.º, n.º 1 e 45.º).

Embora a Convenção não distinga ordem pública interna de ordem pública internacional, tem-se entendido a referência à ordem pública na Convenção como relativa à ordem pública internacional do Estado onde se pretende reconhecer ou executar a decisão arbitral([17]). O artigo 1096.º do Código de Processo Civil Português refere expressamente que apenas é fundamento de recusa de revisão e confirmação de sentenças estrangeiras a que contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português (al. f)). A revisão, portanto, não é de mérito, “já que o tribunal do reconhecimento não pode sindicar a aplicação do direito ou reapreciar a matéria de facto, mas limitar-se a declarar a impossibilidade de reconhecimento com fundamento em contrariedade da decisão aos seus princípios fundamentais”([18]). Para a verificação do requisito exigido pela al. f) do artigo
1096.º do Código de Processo Civil Português, há apenas que atender à decisão em si e não aos respectivos fundamentos([19]).

E, nos termos da lei Portuguesa, tal desconformidade terá de ser manifesta, quando “da sua aplicação surja uma lesão enorme, insuportável ao mais profundo sentimento ético-jurídico do sistema português, como sistema de norma essenciais”([20]).

6. Princípio da aplicação da norma mais favorável

O Direito interno do Estado onde se pretende reconhecer ou executar uma sentença arbitral estrangeira ao abrigo da Convenção é ainda substancialmente relevante, não apenas pelas remissões expressas e já referidas feitas na Convenção, mas porquanto a Convenção estabelece no seu artigo VII que as suas disposições não prejudicam a validade dos acordos multilaterais ou bilaterais celebrados pelos Estados Contratantes em matéria de reconhecimento e de execução de sentenças arbitrais, nem prejudicam o direito de invocar a sentença arbitral que qualquer das partes interessadas possa ter nos termos da lei ou dos tratados do país em que for invocada.

Isto é, segundo a Convenção, os Estados Contratantes apenas podem recusar o reconhecimento e execução de sentenças arbitrais com os fundamentos ali previstos, mas não poderão invocar aqueles fundamentos de recusa quando, de acordo com o seu Direito interno ou outros tratados aplicáveis, o não pudessem fazer. A Convenção é o mínimo denominador comum mas, ao mesmo tempo, não queria que isso fosse um passo atrás para os Estados cujo Direito era mais favorável do que a própria Convenção([21]).

Assim, o Direito interno dos Estados Contratantes pode revelar-se essencial na determinação da existência de fundamentos de recusa do reconhecimento ou execução de sentenças arbitrais estrangeiras, porquanto pode suceder que, nos termos do artigo V da Convenção, a sentença arbitral possa ser recusada, mas que o não possa ser nos termos do Direito interno do Estado Contratante. Nesses casos, e como decorrência do princípio da aplicação da lei mais favorável vertido no artigo VII da Convenção, a sentença arbitral não pode ser recusada.

Vejamos, então, se à luz do Direito interno Português existem normas mais favoráveis ao reconhecimento e execução de sentenças arbitrais estrangeiras do que as previstas na Convenção, tendo também em atenção que Portugal aderiu em 2002 à Convenção Interamericana sobre Arbitragem Comercial Intenacional, aberta à assinatura no Panamá em 30 de Janeiro de 1975([22])

6.1. Validade da convenção arbitral, da capacidade das partes e da competência do tribunal

A Convenção estabelece, no seu artigo 1.º, n.º 1, que cada Estado Contratante reconhece a convenção escrita pela qual as partes se comprometem a submeter a uma arbitragem todos os litígios ou alguns deles que surjam ou possam surgir entre elas relativamente a uma determinada relação de direito, contratual ou não contratual, respeitante a uma questão susceptível de ser resolvida por via arbitral, sendo que se entende por convenção escrita uma cláusula compromissória inserida num contrato, ou num compromisso, assinado pelas partes ou inserido numa troca de cartas ou telegramas.

Sendo certo que a referência a carta e telegramas deve ser interpretada por forma a incluir outros meios de comunicação escrita, nomeadamente os inexistentes à data da Convenção (caso das comunicações electrónicas), a Lei de Arbitragem Voluntária Portuguesa, não só expressamente admite a convenção de arbitragem constante de trocas de cartas, telex, telegramas ou outros meios de telecomunicação([23]) de que fique prova escrita, como também admite a convenção de arbitragem quando embora ela não conste directamente daquelas comunicações, destas conste remissão para algum documento em que a convenção de arbitragem esteja contida (art. 2.º, n.º 2).

Por outro lado, a Lei de Arbitragem Voluntária apenas admite que a sentença arbitral nacional seja impugnada com fundamento na incompetência do tribunal, quando a parte não pôde invocar oportunamente no decurso da arbitragem(art. 27.º, n.º 2), restrição essa que não encontra paralelo na Convenção. E no que toca a sentenças arbitrais estrangeiras, o Direito interno Português é ainda mais permissivo, porquanto apenas admite que a sentença estrangeira seja recusada quando a competência do tribunal estrangeiro tenha sido provocada em fraude à lei ou quando a decisão verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses(art. 1096.º, al. c)([24]). Deste modo, os tribunais Portugueses não poderiam recusar a execução de uma sentença arbitral estrangeira pelo simples facto de a convenção arbitral não estar reduzida a escrito nem constar de comunicações de que fique prova escrita, porquanto admitir-se a convenção arbitral não reduzida a escrito([25]) não fere os princípios subjacentes à ordem pública internacional do Estado Português. Se tal requisito de forma, contudo, fosse exigível pela lei aplicável à convenção de arbitragem, restaria à parte interessada recorrer ou intentar a competente acção de anulação no país de origem.

Também a capacidade das partes não consta como fundamento autónomo de impugnação de decisão arbitral estrangeira, embora se possa reconduzir à incompetência do tribunal arbitral. No entanto, a decisão sobre pessoa incapaz, por menoridade, anomalia psíquica, surdez-mudez ou cegueira, já poderá - em certos casos - bulir com os princípios da ordem pública internacional.

A Convenção determina ainda, na primeira parte do n.º 3 do artigo V, que pode ser recusada a sentença que diga respeito a um litígio que não foi objecto nem da convenção escrita nem da cláusula compromissória, ou que extravasa os seus termos. Também, quanto a este fundamento, vale a regra do Direito interno Português relativa à incompetência do tribunal arbitral. No entanto, entendemos que a menção, no artigo 1096.º do Código de Processo Civil Português, à competência do tribunal provocada por fraude à lei terá necessariamente de incluir os casos em que o litígio pura e simplesmente não foi objecto de convenção arbitral, independentemente da sua forma.

Mas note-se que a decisão que extravasa os termos da convenção de arbitragem não se confunde com as decisões ultra petita. Nas decisões ultra petita, o que está em causa é a desconformidade (em excesso) entre o pedido e a condenação, ao passo que no caso da sentença que extravasa os termos da convenção de arbitragem, poderá estar em causa apenas a incompetência parcial do tribunal. A decisão ultra petita não é fundamento de recusa de reconhecimento ou execução de sentença arbitral estrangeira ao abrigo do Direito Português.

6.2. Garantias de defesa no processo arbitral

A Convenção estabelece que pode ser recusada a sentença arbitral quando a parte contra a qual a sentença é invocada não foi devidamente informada quer da designação do árbitro quer do processo de arbitragem, ou de que lhe foi impossível, por outro motivo, deduzir a sua contestação.

O Direito interno Português apenas admite a recusa da revisão e confirmação de sentença arbitral estrangeira, com base na violação das garantias de defesa do Réu, quando este não tenha sido regularmente citado para a acção, nos termos da lei do país do tribunal de origem, ou quando no processo não hajam sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes (art. 1096.º, al. e) do Código de Processo Civil Português). Aparentemente, os casos previstos na Convenção estarão sempre incluídos neste preceito da legislação portuguesa.

6.3 Arbitrabilidade do litígio

A não arbitrabilidade do litígio reconduz-se também à incompetência do tribunal. No entanto, como se viu supra, a incompetência do tribunal arbitral estrangeiro apenas é fundamento de recusa se a mesma tiver sido provoca em fraude à lei ou quando a decisão verse sobre matéria da competência exclusiva dos tribunais Portugueses. Salvo os casos já referidos em que falece o elemento de internacionalidade, a não arbitrabilidade do litígio nos termos da lei Portuguesa não importa, por regra, a incompetência do tribunal arbitral.

O problema colocar-se-á, com mais acuidade, na medida em que a decisão sobre direitos indisponíveis possa consubstanciar uma violação da ordem pública internacional do Estado Português.

No entanto, por um lado, a violação da ordem pública internacional tem de ser manifesta, ostensiva, intolerável, insuportável. Por outro, as normas imperativas do Direito interno Português não coincidem com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português. Pelo contrário, apenas um núcleo restrito de normas imperativas da legislação Portuguesa pode ser reconduzido aos princípios da ordem pública internacional do Estado Português([26]).

Por último, importa realçar que, nos termos do n.º 2 do artigo 1100.º do Código de Processo Civil Português, se a sentença tiver sido proferida contra pessoa singular ou colectiva de nacionalidade portuguesa, a impugnação pode ainda ser julgada procedente se o resultado da acção lhe teria sido mais favorável caso o tribunal estrangeiro tivesse aplicado o direito material português, quando por este devesse ser resolvida a questão segundo as normas de conflitos da lei portuguesa.

Esta norma, não tendo paralelo na Convenção, será aparentemente irrelevante para efeitos de reconhecimento ou execução de uma sentença arbitral estrangeira proferida num Estado Contratante. No entanto, a mesma pode ser invocada quando a sentença for proferida contra pessoa singular ou colectiva de nacionalidade portuguesa relativamente a direitos indisponíveis. Quando a lei Portuguesa aplicável segundo as respectivas normas de conflitos for imperativa e mais favorável ao cidadão Português, os tribunais Portugueses poderão recusar a sentença arbitral estrangeira à luz das disposições conjugadas do artigo V, n.º 2, al. a) da Convenção, e 1100.º, n.º 2 do Código de Processo Civil Português.

7. Conclusão

O Direito interno dos Estados Contratantes em que se pretende reconhecer ou executar uma decisão arbitral proferida no território de outro Estado Contratante ainda assume um papel relevante nos termos da Convenção de Nova Iorque, quer porque tal Direito interno poderá ser invocado para obstar ao reconhecimento ou execução da decisão arbitral - designadamente com fundamento na incapacidade das partes, na não arbitrabilidade do litígio ou nos princípios da ordem pública internacional), quer porque, inversamente, aquele Direito interno pode ser invocado a favor do reconhecimento ou execução de uma sentença arbitral que, segundo o artigo V da Convenção de Nova Iorque, poderia ser recusada.

Os requisitos na lei interna Portuguesa para a revisão e confirmação de sentença arbitrais estrangeiras são precisamente os mesmos das sentenças judiciais estrangeiras. Os fundamentos de recusa de reconhecimento e execução de sentenças estrangeiras são poucos e apertados. O Direito interno Português é, assim, altamente favorável à arbitragem estrangeira, tendo por isso substancial relevância no momento de reconhecer ou executar uma decisão arbitral estrangeira em Portugal ao abrigo da Convenção de Nova Iorque.

A nosso ver, o Direito interno Português - no que toca ao reconhecimento e execução de sentenças arbitrais estrangeiras - poderá, até, pecar por demasiado permissivo. Nos casos de decisões arbitrais proferidas no território de Estados Contratantes que as considerem decisões “a-nacionais”, a parte vencida poderá nunca ter a oportunidade de invocar alguns dos fundamentos típicos de anulação de decisões arbitrais, designadamente a própria arbitrabilidade do litígio ao abrigo da lei designada pelas partes aplicável à convenção. Por um lado, os tribunais do país de origem recusam-se a julgar a validade da decisão arbitral em acção de anulação por a considerarem desligada da sua ordem jurídica estadual. Por outro lado, os tribunais do país da execução, a serem Portugueses, podem por sua vez recusar-se a apreciar a questão da arbitrabilidade do litígio, que não no estrito âmbito da incompetência do tribunal provocada por fraude à lei, das decisões que versam sobre matérias da competência exclusiva dos tribunais Portugueses ou da violação da ordem pública internacional do Estado Português.

Se o futuro da arbitragem internacional passa pela desconexão do processo arbitral com a ordem jurídica do Estado em que é proferida a decisão arbitral, os fundamentos de recusa do reconhecimento e execução de sentenças arbitrais estrangeiras do Direito interno Português devem ser revistos.

 


(*) Advogado de Uría Menéndez

([1]) Ambos publicados no Diário da República n.º 156, Série I-A, de 8 de Julho de 1994 (páginas 3642 a 3647).

([2]) Nos termos do n.º 1 do artigo I da Convenção, esta aplica-se ao reconhecimento e execução de sentenças arbitrais proferidas noutros Estados, mesmo que não Contratantes, salvo se - nos termos do  n.º 3 do mesmo artigo - o Estado que aderir declarar que apenas aplicará a Convenção ao reconhecimento e à execução de sentenças proferidas no território de um outro Estado Contratante. Portugal opôs esta reserva. Por outro lado, a Convenção aplica-se a sentenças proferidas no território de um Estado que não aquele em que são pedidos o reconhecimento e a execução das sentenças, ainda que neste a mesma seja considerada uma sentença nacional. A Convenção aplica-se ainda a sentenças proferidas no território do Estado Contratante onde se pretende reconhecer ou executar a sentença, desde que esse Estado as não considere uma sentença nacional. O critério do lugar em que é proferida a arbitragem é, por isso, preponderante, mas deve ser cuidadosamente interpretado. Com efeito, levado ao extremo, o reconhecimento de uma sentença arbitral entre dois nacionais de um Estado Contratante, em processo organizado de acordo com a leis daquele Estado, cujo o processo ali decorreu, mas cuja sentença foi proferida - até por motivos de oportunidade - noutro Estado Contratante, beneficiaria das normas previstas na Convenção. Isto permitiria, ab absurdo, que os árbitros determinassem se a Convenção era ou não aplicável, conforme escolhessem o lugar onde proferir a sentença. O lugar da arbitragem deve, contudo, entender-se como o local onde a decisão se considera proferida, sendo este o local designado pelas partes ou escolhido pelos árbitros (neste sentido Craig / Park / Paulsson, International Chamber of Commerce Arbitration, 2.ª Edição, Nova Iorque, Londres e Roma, 1990, pág. 457. “A elaboração de decisão noutro lugar, devido a circunstâncias acidentais, não pode, em princípio, ser relevante” (Lima Pinheiro, Arbitragem Transnacional, 2005, pág. 295).

([3])  Sendo embora o Direito interno dos Estados Contratantes a determinar o processo de reconhecimento e execução de sentenças arbitrais proferidas noutros Estados Contratantes, a Convenção estabelece que não serão aplicadas quaisquer condições sensivelmente mais rigorosas, nem custas sensivelmente mais elevadas, do que aquelas que são aplicadas para o reconhecimento ou a execução das sentenças arbitrais nacionais.

([4])  Os menores, porém, adquirem plena capacidade para o exercício de direitos com a emancipação, adquirida pelo casamento (art. 132.º e 133.º do Código Civil Português), o que podem celebrar a partir dos dezasseis anos (al. a) do art. 1601.º do Código Civil Português). Nos termos do disposto no art. 127.º, n.º 1, al. a) do Código Civil Português, são ainda válidos os actos de administração ou disposição de bens que o maior de dezasseis anos haja adquirido por seu trabalho. Assim, é defensável a validade da convenção de arbitragem celebrada por menor com mais de dezasseis anos relativa a bens que adquiriu por seu trabalho.

([5])  Nos termos do disposto nos artigos 25.º e 28.º do Código Civil.

([6])  De acordo com o Direito interno Português, a capacidade da pessoa colectiva é regulada pela respectiva lei pessoal que, por sua vez, é a do Estado onde se encontra situada a sede principal e efectiva da sua administração (art. 33.º do Código Civil Português). A lei pessoal e capacidade das sociedades comerciais estão previstas nos artigos 3.º e 6.º do Código das Sociedades Comerciais.

([7])  Fouchard / Gaillard / Goldman, On International Commercial Arbitration, Holanda, 1999, pág. 242, 984

([8])  Artigos 260.º, n.º 1 e 409.º, n.º 1 do Código das Sociedades Comercial Português. Contudo, a sociedade pode, no entanto, opor a terceiros as limitações de poderes resultantes do seu objecto social, se provar que o terceiro sabia ou não podia ignorar, tendo em conta as circunstâncias que o acto praticado não respeitava essa cláusula e se, entretanto, a sociedade o não assumiu, por deliberação expressa ou tácita dos sócios/accionistas (n.º 2 dos artigos 26.º e 409.º). Não nos parece, porém, que a celebração de uma convenção de arbitragem, como acto de administração ordinário, possa bulir com o objecto social de uma sociedade comercial.

([9])  Van den Berg, The New York Arbitration Convention of 1958, Deventer, Boston, Reimpressão, 1994, pág. 23

([10]) Lei n.º 31/86, de 29 de Agosto, publicada no Diário da República n.º 198, Série I-A, de 29 de Agosto de 1994 (páginas 2259 a 2264), com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de Março.

([11]) Caso a arbitragem tenha natureza puramente interna, i.e., quando não existam qualquer elementos de “internacionalidade” do litígio,          os Tribunais Portugueses não deixarão de se considerar competentes para a acção de anulação, ainda que as Partes tenham estabelecido a sede de arbitragem noutro país.,. Sobre o elemento de “internacionalidade”, muito discutido a propósito do artigo II, n.º 3, da Convenção, cfr. Van den Berg, Ob. Cit., pág. 58. No mesmo sentido, Lima Pinheiro, Ob Cit., pág. 365, estabelecendo um paralelo com o instituto da fraude à lei em Direito Internacional Privado. É aliás, nos termos do disposto no art. 1096.º do Código de Processo Civil Português, fundamento de impugnação da revisão e confirmação de sentenças estrangeiras (judiciais ou arbitrais) a sentença que provenha de tribunal estrangeiro cuja competência tenha sido provocada em fraude à lei (al. c)). Paralelamente, no que toca ao direito aplicável ao mérito da causa note-se ainda que o art. 41.º do Código Civil Português (lei aplicável aos negócios jurídicos) não permite que os sujeitos possam designar uma lei estrangeira para regular o negócio jurídico celebrado se essa designação não corresponder a um interesse sério dos contratantes, nem estiver em conexão com algum dos elementos do negócio jurídico atendíveis no domínio do direito internacional privado.

([12]) Este é um dos pontos em que diverge a execução de sentenças nacionais e a execução de sentenças estrangeiras. Segundo o artigo 47.º do Código Civil Português (aplicável a sentenças nacionais), a sentença só constitui título executivo depois do trânsito em julgado, salvo se o recurso contra ela interposto tiver efeito meramente devolutivo. Esta excepção, prevista no final do n.º 1 do art. 47.º, não tem paralelo no art. 1096.º, aplicável a sentenças estrangeiras. Para que a sentença estrangeira seja executável em Portugal, a mesma terá de ter transitado em julgado segundo a lei do país de origem, mesmo que o recurso interposto segundo aquela lei tenha efeito meramente devolutivo.

([13]) Contradição que, nos termos da lei interna Portuguesa, seria dirimida a favor da que transitasse em julgado em primeiro lugar (art. 675.º do Código de Processo Civil Português).

([14]) Parece-nos, também, que o Direito Interno Português não reconhece as designadas sentenças “a-nacionais”, i.e., sentenças desligadas de qualquer ordem jurídica estadual.

([15]) Por exemplo, nos termos do Código do Trabalho Português, o trabalhador não pode renunciar aos créditos provenientes do direito à indemnização por acidente de trabalho (art. 302.º)

([16]) Por exemplo, de acordo com o art. 79.º do Código Civil Português, pode-se dispor do respectivo direito à imagem.

([17]) Van den Berg, The New York Arbitration Convention of 1958, Deventer, Boston, Reimpressão, 1994, pág. 361

([18]) Paula Costa e Silva, A Execução em Portugal de Decisões Arbitrais Nacionais e Estrangeiras, Revista da Ordem dos Advogados, ano 67, Setembro 2007, pag. 654.

([19]) Neste sentido, recente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 03-07-2008, proc. 08B1733, disponível em www.dgsi.pt.

([20]) Acordão do  Tribunal da Relação do Porto de 11-10-2004, proc. 0454490, disponível em www.dgsi.pt

([21]) Yves Derains, El principio de aplicación de la norma más favorable y su impacto en el desarrollo del arbitraje internacional, comunicação feita no III Congresso Internacional de Arbitragem do Club Español del Arbitraje, disponível em http://www.clubarbitraje.com/files/docs/Y.Derains.pdf.

([22]) Aprovada, para ratificação, através da Resolução da Assembleia da República n.º 23/2002, de 20 de Dezembro de 2001, e posterior ratificação, através de Decreto do Presidente da República n.º 21/2002, de 13 de Março.

([23]) A Convenção Interamericana admite apenas a convenção de arbitragem quando conste de documento assinado pelas partes, ou de troca de cartas, telegramas ou comunicações por telex.

([24]) Nos termos do disposto no art. 65.º-A do Código de Processo Civil Português, os tribunais portugueses têm competência exclusiva para: a) as acções relativas a direitos reais ou pessoais de gozo sobre bens imóveis sitos em território português; b) os processos especiais de recuperação de empresa e de falência, relativos a pessoas domiciliadas em Portugal ou a pessoas colectivas ou sociedades cuja sede esteja situada em território português; c) As acções relativas à apreciação da validade do acto constitutivo ou ao decretamento da dissolução de pessoas colectivas ou sociedades que tenham a sua sede em território português, bem como à apreciação da validade das deliberações dos respectivos órgãos; d) as acções que tenham como objecto principal a apreciação da validade da inscrição em registos públicos de quaisquer direitos sujeitos a registo em Portugal; e) As execuções sobre bens existentes em território português.

([25]) Como, por exemplo, prevê a Convenção de Genebra de 1961.

([26])“Não é princípio fundamental de ordem pública o preceito relativo a direitos indisponíveis” (Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 12-12-1980, in Colectânea de Jurisprudência, 1980, 5.º-36). São muitos os exemplos na jurisprudência Portuguesa de casos em que os tribunais Portugueses reconhecem decisões estrangeiras, ainda que em violação de normas imperativas internas.

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