Análise e projeções para 2024 em matéria de contencioso e arbitragem no mercado português

Janeiro 2024


Tal como nos anos anteriores, apresentamos de seguida a visão da Uría Menéndez - Proença de Carvalho sobre os principais desenvolvimentos e tendências que podem afetar o contencioso e arbitragem no mercado português durante o ano de 2024, que agora se inicia.

 


1. Direito digital e inteligência artificial em Portugal

2. Processo civil e penal em Portugal

3. Insolvência e reestruturações em Portugal

4. Arbitragem internacional

5. Cláusulas contratuais gerais e contencioso em matéria de consumo em Portugal

6. Ações coletivas e ilícitos concorrenciais

7. Contencioso ESG (Environmental, Social and Governance)

8. Contencioso europeu


 

1. Direito digital e inteligência artificial em Portugal

  • Depois de em 2018 a DECO ter demandado o Facebook / Meta em ação coletiva inibitória e indemnizatória que terminaria pouco depois por acordo, entre 2022 e 2023 a Ius Omnibus, associação de defesa de consumidores recém-constituída, avançou com ações coletivas contra Google (Pay Store), Apple, Sony (Playstation) e TikTok, sendo expectável que mais ações similares venham a surgir em Portugal no futuro próximo, num setor onde as mudanças de regulamentação têm sido constantes e os reguladores têm tido forte intervenção.
  • A existência em Portugal de associações de consumidores beligerantes, com apoio de financiadores de litígios internacionais, associada a um regime legal facilitador da instauração de ações coletivas em matéria de direito do consumo, resultarão muito provavelmente em novas ações e litígios em 2024.
  • Além disso, temas como a proteção dos direitos de autor no uso de artigos de imprensa pelas plataformas digitais ou o uso e acesso a dados pessoais para efeitos de publicidade dirigida, continuarão, na nossa perspetiva, a dar origem a litígios em 2024, potencialmente de valores muito elevados, no contexto das regras impostas pela legislação europeia que visa a consolidação do mercado digital único, no caso o Regulamento dos Mercados Digitais (Regulamento (UE) 2022/1925 do Parlamento Europeu e do Conselho de 14 de Setembro) e o Regulamento dos Serviços Digitais (Regulamento (UE) 2022/2065 do Parlamento Europeu e do Conselho de 19 de Outubro de 2022), que vai certamente originar novos desafios relacionados com o cumprimento de obrigações dos grandes players deste mercado, relacionados com a garantia da segurança dos utilizadores em linha (online) e a defesa dos consumidores.
  • Por outro lado, a aprovação iminente do Regulamento Europeu de Inteligência Artificial (IA), que está centrado na classificação dos sistemas de IA de acordo com o risco (mínimo, limitado, elevado e inaceitável) que representam para a saúde, a segurança, a democracia e a lei, trará igualmente importantes desafios de compliance e potencialmente originará alguma litigância entre criadores, fornecedores e utilizadores de sistemas de IA.     

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2. Processo civil e penal em Portugal

  • Em Portugal, antecipa-se que, em 2024, a tramitação dos processos judiciais civis e penais não urgentes continue a ser fortemente afetada por atrasos na evolução das ações e adiamentos de diligências, em virtude das sucessivas greves dos oficiais de justiça que já ocorreram em 2023 e previsivelmente se manterão e poderão ser agravadas no futuro próximo, uma vez que o processo de revisão legislativa do estatuto dos oficiais de justiça não avançou, por força da demissão do Governo, decretada pelo Presidente da República em 7 de Dezembro de 2023.
  • Em matéria penal, na sequência da primeira acusação deduzida pela Procuradoria Europeia em Portugal em 6 de dezembro de 2023, num caso de suposta fraude intracomunitária ao IVA, antecipa-se que, em 2024, os demais casos investigados pela Procuradoria Europeia possam avançar e, eventualmente, serem deduzidas acusações em casos de crimes lesivos dos interesses financeiros da União Europeia, seja a propósitos de crimes de fraude intracomunitária ao IVA ou, por exemplo, fraudes para obter subsídios ou outros apoios financeiros da União Europeia.
  • De resto, antecipa-se que, em 2024, possíveis irregularidades na execução de subsídios e auxílios públicos, incluindo no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência, possam dar lugar a novos processos.
  • Antecipa-se, ainda, que em 2024 o Ministério Público continue a centrar a sua ação em casos de corrupção nos setores público e privado, prevaricação, tráfico de influência, branqueamento e fraude fiscal, ficando o ano ainda marcado pelo arranque de julgamentos de alguns dos casos mais marcantes dos últimos anos em Portugal, envolvendo ex-governantes e altas figuras do Estado.
  • Finalmente, espera-se, em face das eleições legislativas de Março de 2024 e das circunstâncias que levaram à queda do Governo, um debate público intenso acerca de iniciativas legislativas em torno da criminalização do enriquecimento ilícito e da eventual regulamentação do lobbying.

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3. Insolvência e reestruturações em Portugal

  • O número de insolvências e de processos de recuperação de empresas em Portugal aumentou exponencialmente desde maio de 2023, afetando sobretudo pequenas empresas de vários sectores, em especial serviços, construção e retalho. Prevê-se que esta tendência de aumento se mantenha até 2024, à medida que o impacto da instabilidade económica e do aumento dos custos de financiamento for afetando um número cada vez maior de empresas, incluindo as médias e grandes.
  • No que respeita à legislação, não é possível, nesta fase, antecipar desenvolvimentos relevantes em 2024, dada a demissão do Governo em Dezembro de 2023 e a marcação de novas eleições para Março de 2024, cujo resultado permanece incerto.
  • Por outro lado, o sistema jurídico português sofreu uma importante reforma em 2022, através da transposição da Diretiva (UE) 2019/1023, que introduziu as principais alterações que tinham sido exigidas pelos operadores judiciários nos anos anteriores.
  • No entanto, espera-se que o Supremo Tribunal de Justiça clarifique a forma de cálculo da remuneração dos administradores de insolvência, talvez a questão mais polémica da reforma de 2022, sobre a qual ainda hoje existem interpretações discrepantes.

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4. Arbitragem internacional

  • Na arbitragem internacional, os litígios no sector das energias renováveis vão continuar, tanto na fase pré-contratual e de negociação dos contratos, como na de construção e exploração dos projetos.
  • Prevemos também que se mantenha a tendência de grandes arbitragens em contratos de fornecimento de petróleo e gás, nomeadamente quando é necessário um ajustamento de preços.
  • O desenvolvimento de grandes projetos de infraestruturas em várias partes do mundo (em particular na América Latina) também dará, sem dúvida, origem a litígios significativos, que serão resolvidos através da arbitragem internacional.
  • No entanto, em grandes projetos de construção, prevemos a utilização de métodos alternativos de resolução de litígios, como os dispute boards, como um passo prévio à arbitragem, o que acelerará a resolução de litígios e poderá evitar que estes se consolidem e aumentem.
  • Outros métodos alternativos de resolução de litígios, como a mediação, continuarão a ser progressivamente introduzidos. Estes sistemas alternativos de resolução de litígios, que poderão terminar em arbitragem (caso não se chegue a acordo), conduzirão à inclusão de cláusulas de escalonamento nos contratos.
  • Em 2024, será também importante ver como se desenvolverá a aplicação das alterações ao regulamento do Centro Internacional de Arbitragem de Madrid, que deverá desempenhar um papel importante na administração da arbitragem internacional, dada a importância crescente de Madrid como sede de arbitragem.
  • Por fim, espera-se que a arbitragem de investimento consolide a sua expansão para áreas menos tradicionais, como os litígios decorrentes de medidas fiscais ou relacionados com regimes de sanções internacionais.
  • Paralelamente, será necessário acompanhar de perto a implementação do Código de Conduta para os Árbitros na Resolução de Litígios de Investimento Internacional, elaborado pela Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional e pelo ICSID e publicado em outubro de 2023, que poderá ter impacto na prática não só da arbitragem de investimento, mas da arbitragem internacional em geral.
  • Em Portugal, prevemos que aumentem as arbitragens em litígios societários, nomeadamente as relacionadas com acordos parassociais e compras e vendas de participações sociais. Prevemos também que continuam a surgir arbitragens relativas a empreitadas, incluindo as relacionadas com a revisão de preços.
  • Acresce que o Centro de Arbitragem da Associação Comercial de Lisboa tem procurado estabelecer-se como referencial para arbitragens em litígios envolvendo investimentos e contratos em países lusófonos, com destaque para Angola e Moçambique, esperando-se que em 2024 esta aposta possa começar a dar frutos.

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5. Cláusulas contratuais gerais e contencioso em matéria de consumo em Portugal

  • No ano de 2024, prevê-se a continuação da tendência de aumento de litígios em matéria de clausulas contratuais gerais e consumo, em particular em matérias como práticas comerciais desleais, publicidade enganosa e incumprimento do normativo aplicável ao comércio eletrónico.
  • Na verdade, o impulso principal deste tipo contencioso tem sido, por um lado, o crescente interesse da ASAE em matérias relacionadas com o e-commerce e, por outro, o surgimento de associações de consumidores especializadas nestas matérias, recorrendo ao mecanismo das ações populares. Estas associações já deram entrada de dezenas de ações e antecipa-se que continuem a reforçar esta abordagem, abrangendo a generalidades dos setores de atividade, da banca ao retalho alimentar, bem como condutas diversas, desde cláusulas contratuais gerais, a incumprimento de normas de rotulagem e a publicidade enganosa.
  • Ademais, a adoção do Decreto-Lei n.º 114-A/2023, de 5 de dezembro, que veio transpor a Diretiva (UE) 2020/1828 (“DL 114-A/2023”) relativa a ações coletivas para proteção dos interesses dos consumidores, deverá levar a um aumento da litigância em matéria de consumo, tendo em conta o enquadramento específico do private litigation funding deste tipo de ações.
  • Em consequência, antecipam-se riscos acrescidos de litigância, principalmente com a intensificação da intervenção das associações de consumidores, das iniciativas de financiamento privado neste domínio e a possibilidade de instauração de ações por entidades estrangeiras qualificadas ou ações transfronteiriças.

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6. Ações coletivas e ilícitos concorrenciais

  • Prevê-se uma retoma da atividade da Autoridade da Concorrência no que concerne práticas restritivas da concorrência, depois de um ano de 2023 marcado por mudanças no Conselho de Administração da Autoridade e por alguns revezes judiciais.
  • A este respeito, prevê-se que 2024 seja marcado por um nível considerável de processos, tanto na fase administrativa, como em sede de recursos judiciais contra as decisões da Autoridade da Concorrência.
  • Quanto a este último ponto, existirão desenvolvimentos relevantes nos recursos pendentes relacionados com a investigação ao setor da banca e da hospitalização privada, entre outros, mormente junto dos tribunais superiores e do Tribunal Constitucional.
  • Também no âmbito do private enforcement se esperam desenvolvimentos relevantes. Desde 2019, quando surgiram as primeiras ações de private enforcement com apelo à aplicação da Diretiva 2014/104/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Novembro de 2014 (“Diretiva dos Danos”) e da Lei n.º 23/2018, de 5 de Junho (“Lei 23/2018”) que procede à respetiva transposição, no contexto do chamado Cartel dos Camiões, Portugal tem assistido a uma verdadeira explosão de ações indemnizatórias por ilícitos concorrenciais, sobretudo ações coletivas de private enforcement, mas também stand alone, muitas das quais com apoio de financiadores de litígios ou third party funders e impulsionadas por associações de consumidores recém constituídas, como a Ius Omnibus e a Citizen’s Voice, que se vieram juntar à histórica Associação de Defesa dos Consumidores - DECO.
  • Antecipa-se que em 2024 Portugal continuará a assistir a um forte atividade neste tipo de litigância, impulsionada pelas referidas associações de consumidores e pela existência de um quadro legislativo favorável através da Lei de Ação Popular de 1995 (“LAP”), a que se soma o recentemente promulgado Decreto-Lei n.º 114-A/2023, de 5 de Dezembro, supra referido.
  • Tendo em conta que a LAP já conferia ampla legitimidade ativa às associações de consumidores e estabelecia um regime de opt-out, as principais novidades do DL 114-A/2023 prendem-se, a par das já mencionadas ações transfronteiriças, com a regulamentação do recurso a financiamento de terceiros em ações coletivas, traduzida no estabelecimento de regras mais apertadas em matéria de independência das associações de consumidores e de gestão de conflitos de interesse face aos third party funders, bem como limites à remuneração destes últimos e regras para o respetivo processamento.
  • Espera-se que esta nova legislação possa trazer maior clareza e segurança jurídica numa matéria - a do recurso a financiamento de terceiros em ações coletivas - em que tem havido grande conflitualidade entre demandados e associações de consumidores.
  • Aguarda-se também com grande expectativa uma clarificação e consolidação em 2024 da jurisprudência dos nossos tribunais superiores em matéria de interpretação e aplicação do regime da Lei 23/2018 em matéria de prova do dano, depois de terem sido proferidos dois acórdãos conflituantes pela Secção de Propriedade Intelectual e da Concorrência, Regulação e Supervisão do Tribunal da Relação de Lisboa[1] em processos do chamado Cartel dos Camiões, o primeiro concluindo que a Decisão sancionatória da Comissão Europeia não era suficiente para dar por provada a existência de dano e o segundo concluindo em sentido contrário, fixando o dano em 5% do preço pago pelos camiões com base em estimativa judicial, decisão esta entretanto pendente de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
  • Finalmente, existe um conjunto de ações follow-on de decisões da Autoridade da Concorrência em perspetiva para 2024, desde as ações relativas à investigação no setor da banca, aos alegados cartéis hub and spoke no setor da distribuição alimentar, que prometem colocar à prova a capacidade dos tribunais nacionais para gerir e decidir casos jurídica e tecnicamente complexos, nos quais os temas da prova e quantificação do dano assumem relevância decisiva.

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7. Contencioso ESG (Environmental, Social and Governance)

  • O Conselho e o Parlamento Europeu chegaram recentemente a um acordo provisório sobre a Diretiva sobre diligência devida às empresas em matéria de sustentabilidade, o que permite antecipar a respetiva aprovação formal nos próximos meses.
  • Esta Diretiva pretende evitar impactos adversos (potenciais ou reais) provocados pelas atividades empresariais sobre os direitos humanos e o meio-ambiente. Estabelece obrigações de integração da diligência devida nas políticas corporativas e obrigações de deteção, avaliação, prevenção, mitigação e reparação de efeitos adversos sobre os direitos humanos e o meio-ambiente. Estas obrigações projetam-se sobre a própria empresa, suas filiais, bem como sobre a sua cadeia de valor e os parceiros comerciais.
  • A Diretiva será aplicável a grandes empresas (por número de trabalhadores e volume de negócios mundial) com sede na União Europeia, bem como a empresas não pertencentes à União Europeia com um volume de negócios liquido na UE que supere determinados limites. Os serviços financeiros ficam temporariamente excluídos do âmbito de aplicação da Diretiva.
  • O incumprimento das obrigações da Diretiva poderá dar lugar à aplicação de sanções por parte da autoridade nacional independente designada por cada Estado Membro, as quais, devendo ter um carácter dissuasor, poderão atingir 5% do volume de negócios líquido da empresa visada.
  • Ademais, estabelece-se um regime de responsabilidade civil que permite às pessoas prejudicadas reclamar compensações pelos danos sofridos como consequência da infração das referidas obrigações. Este regime de responsabilidade civil contempla um prazo de prescrição de cinco anos, uma legitimação ativa ampla a favor de entidades da sociedade civil, uma limitação de custas processuais e normas específicas em matéria de prova e de medidas cautelares.
  • Ainda em matéria de ESG, o ano de 2024 em Portugal ficará seguramente marcado pelos desenvolvimentos da primeira ação popular por inação climática instaurada no final de 2023 pelas associações ambientalistas Último Recurso, Quercus e Sciaena contra o Estado português no Juízo Central Cível de Lisboa, por alegada violação da Lei de Bases do Clima, através da qual se pretende, entre outras questões, que o Estado seja condenado a adotar as medidas necessárias e suficientes para assegurar, em relação aos valores de 2005, uma redução até 2030 de, pelo menos, 55% de emissão de gases de efeito estufa, sendo que as autoras pretendem que estas medidas sejam calendarizadas no prazo de três meses desde a data de produção de efeitos da sentença.
  • De resto, estamos em crer que esta ação marcará o ano de 2024 em matéria de ESG, podendo servir de modelo para futuras ações coletivas similares contra grandes empresas, ao abrigo do regime da Diretiva a que acima se alude. 

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8. Contencioso europeu

  • Prevê-se que, em 2024, se assista a um aumento do volume de litígios em matéria de contencioso europeu, principalmente em domínios específicos como o consumo, proteção de dados, tecnologia e digital, em parte, conforme já aflorado, por se tratar de setores em rápida evolução e transformação, objeto de reformas legislativas recentes e forte intervenção dos reguladores.
  • Tal como se verificou em 2023, prevê-se um número crescente de questões prejudiciais submetidas pelos tribunais nacionais ao Tribunal de Justiça da UE. Em matérias específicas (e.g., concorrência, consumo, fiscalidade) os tribunais portugueses têm remetido cada vez mais questões prejudiciais para o Tribunal de Justiça da UE. Esta é uma tendência que parece ser comum à maioria dos Estados-Membros, em resultado da crescente atividade legislativa, orientações e regras europeias em geral que se aplicam a nível nacional.
  • A reforma em curso do Estatuto do Tribunal de Justiça da União Europeia poderá também trazer algumas alterações neste domínio, uma vez que está previsto que o Tribunal de Justiça possa transferir a competência em matéria de decisões prejudiciais para o Tribunal Geral em domínios específicos (incluindo em determinadas matérias no domínio fiscal, transporte, ambiente), enquanto o Tribunal de Justiça manterá a competência em questões de princípio, como as que envolvem a interpretação dos Tratados ou da Carta dos Direitos Fundamentais.

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[1]   Acórdão de 12 de Setembro de 2023, proferido no processo n.º processo n.º 12/19.0YQSTR.L1 e Acórdão de 6 de Novembro de 2023, proferido no processo n.º 54/19.6YQSTR.L1.