Análise e projeções para 2025 em matéria de contencioso em Portugal e de arbitragem internacional
Janeiro 2025
Tal como nos anos anteriores, apresentamos de seguida a visão da Uría Menéndez sobre os principais desenvolvimentos e tendências que podem afetar o contencioso no mercado português e a arbitragem internacional durante o ano de 2025, que agora se inicia.
3. Direito digital e inteligência artificial
4. Insolvência e reestruturações
5. Cláusulas contratuais gerais e contencioso em matéria de consumo
6. Ações coletivas e ilícitos concorrenciais
9. Contencioso setor energético
1. Processo civil e penal
Em Portugal, prevê-se que 2025 seja marcado, em matéria civil, por novas medidas de simplificação e agilização processual e, em matéria penal, antecipa-se que as medidas gerais contra a corrupção venham a ser concretizadas, com impacto, por exemplo, em matérias relativas a perdas alargadas de bens, proteção de denunciantes e maior celeridade dos processos.
- Em matéria processual civil, prevêem-se novas medidas de simplificação e agilização processual, tendência essa que o atual Governo inaugurou com Decreto-Lei n.º 87/2024, de 7 de novembro, o qual estabeleceu a citação eletrónica como regime regra a aplicar às empresas.
- É também expectável que o Governo venha a clarificar outras questões relativas à graduação de créditos – como fez com o Decreto-Lei n.º 48/2024, de 25 de julho – designadamente a propósito da abrangência do privilégio imobiliário atribuídos aos trabalhadores e à subsistência dos contratos de arrendamentos em caso de venda executiva.
- Em matéria penal e processual penal, antecipa-se que, em 2025, sejam concretizadas as diversas medidas gerais contra a corrupção que o governo pré-anunciou em 2024.
- Neste contexto, para além da concretização de medidas de natureza preventiva (que, por exemplo, envolverão medidas de reforço da transparência, em sede de contratação), espera-se que, a nível de investigação e do ponto de vista repressivo, sejam desenvolvidas novas medidas com maior amplitude e eficácia, por exemplo, uma maior celeridade dos processos (nomeadamente no que diz respeito a recursos interlocutórios e ao reforço dos poderes dos juízes na condução dos processos), medidas adicionais de proteção dos denunciantes de corrupção, criação de uma “lista negra" de fornecedores do Estado e, sobretudo, novidades a nível de perda alargada de bens a favor do Estado, em resultado da corrupção. Em particular, as medidas a nível da perda de bens poderão continuar problemas no caso de terceiros (isto é, não arguidos) serem visados por essas medidas de perdas de bens, se o regime de defesa destes terceiros permanecer a ser regulado de forma insuficiente e genérica, tal como ocorre atualmente em Portugal.
- Ainda neste contexto, tendo o Governo já recebido as contribuições da consulta pública sobre a agenda anticorrupção, é igualmente expectável que, em 2025, surjam desenvolvimentos sobre possíveis medidas quanto ao combate ao enriquecimento ilícito e regulamentação do lobbying.
- Acresce que, durante 2025, se espera um papel mais ativo em inspeções administrativas a levar a cabo pelo Mecanismo Nacional Anticorrupção (MENAC) em entidades públicas e privadas, sendo expectável que esta circunstância possa, também, gerar como incentivo para um número crescente de denúncias ao Ministério Público de possíveis casos de corrupção nos setores públicos e privados, incluindo infrações conexas, por forma a que as entidades abrangidas pelo Regime Geral da Prevenção da Corrupção demonstrem que os seus sistemas de compliance são adequados e efetivos.
- Durante 2025, são ainda esperados desenvolvimentos em processos em curso relativamente a alegados crimes lesivos dos interesses financeiros da União Europeia e alegadas fraudes na obtenção de subsídios (incluindo decisões finais em processos cujos julgamentos já foram concluídos em 2024), bem como desenvolvimentos de mega-processos pendentes em matéria de crimes económicos, nomeadamente quanto ao início ou à evolução dos respetivos julgamento.
2. Arbitragem internacional
Como projeção favorável para 2025 no âmbito da arbitragem internacional em Portugal, os últimos meses têm testemunhado a consolidação de uma interpretação restritiva das ações de anulação de laudos arbitrais. Além disso, espera-se um aprofundamento da cooperação com os mercados de arbitragem lusófonos, em especial, Angola, que possa progressivamente aumentar a relevância de Portugal como sede de arbitragens internacionais.
- Ao indeferir os pedidos de anulação de laudos arbitrais que perante si haviam sido formulados em duas decisões proferidas em 2024, os tribunais judiciais nacionais vieram reafirmar a arbitragem como um mecanismo definitivo de resolução de litígios, promovendo a segurança jurídica dos laudos arbitrais e impedindo que as ações de anulação sejam indevidamente utilizadas como um recurso encapotado contra decisões arbitrais.
- Num dos casos, o tribunal estadual português rejeitou a anulação do laudo arbitral, decidindo, em síntese, que: (i) para avaliar o alegado incumprimento de um contrato contendo uma cláusula arbitral, o tribunal arbitral teve de analisar a execução de outro contrato relacionado com o anterior, mas não abrangido por aquela cláusula arbitral; (ii) uma vez que o processo arbitral prosseguiu para julgamento sem objeções, considera-se que as partes aceitaram a “competência ampliada" do tribunal arbitral para se pronunciar sobre o incumprimento deste segundo contrato; (iii) a objeção baseada na ordem pública internacional do Estado Português não pode ser utilizada para contestar uma determinada condenação decidida pelo tribunal arbitral, por alegada falta de prova.
- Noutro caso, o tribunal estadual português rejeitou a anulação do laudo arbitral, decidindo, em síntese, que: (i) o requerente alegou que a decisão arbitral, ao aplicar o contrato, violava o direito português (uma norma derivada da União Europeia); (ii) o tribunal que apreciou a ação de anulação afirmou que, mesmo que o laudo arbitral tivesse feito uma interpretação do contrato violadora do direito português, isso não levaria à anulação da sentença por violação de um princípio de ordem pública internacional do Estado Português.
- Em conclusão, o indeferimento destas duas ações de anulação – em que os requerentes se basearam em vários argumentos formais para tentar anular os respetivos laudos arbitrais – demonstra que o sistema judicial português está a consolidar um caminho que favorece a segurança jurídica dos laudos arbitrais, impedindo o uso de argumentos formais, que teoricamente visariam fundamentar a anulação do laudo, mas que na prática são um mecanismo encapotado para recorrer do laudo arbitral.
- Sobre perspetivas de expansão do mercado, as associações e os centros de arbitragem em Portugal têm cooperado e procurado estabelecer-se como referencial para arbitragens em litígios envolvendo investimentos e contratos em países lusófonos, ou que apresentem fortes ligações com a comunidade jurídica portuguesa. Destacamos as seguintes iniciativas nos últimos meses: a Conferência internacional de arbitragem 'Promover e Proteger o Investimento estrangeiro em Angola', que teve lugar no Salão Nobre da Câmara de Comércio e Indústria Portuguesa, e o Congresso de Arbitragem Lusófona Macau 2024. Antecipa-se que a aposta da arbitragem nestes mercados lusófonos, principalmente o angolano, comecem a dar frutos em 2025, aumentando progressivamente a relevância de Portugal como sede de arbitragens internacionais.
3. Direito digital e inteligência artificial
Espera-se que em 2025 surjam desenvolvimentos nas diversas ações coletivas indemnizatórias pendentes em Portugal contra as big tech, designadamente em matéria de apreciação das exceções dilatórias deduzidas pelas defesas, que poderão trazer novidades e clarificações sobre a viabilidade deste tipo de ação na sua atual configuração. Por outro lado, antecipa-se que os primeiros litígios relacionados com a Inteligência Artificial (IA) possam começar a surgir, à medida que se vão implementando as regras aprovadas pela Comissão nesta matéria.
- Existem presentemente ações coletivas pendentes em Portugal contra algumas das maiores empresas tecnológicas como são os casos da Google (Play Store), Apple, Sony (Playstation), TikTok e Meta, todas elas com recurso a financiamento de terceiros, sendo expectável que possam continuar a surgir novas ações similares em 2025, num setor onde as mudanças de regulamentação têm sido constantes e os reguladores têm tido forte intervenção.
- A existência em Portugal de associações de consumidores beligerantes, com apoio de financiadores de litígios internacionais, associada a um regime legal facilitador da instauração de ações coletivas em matéria de direito do consumo, está na origem desta profusão de ações, sendo expectável que em 2025 surjam novas ações similares.
- Muito embora já tenham sido proferidas algumas decisões ao longo de 2024, sobretudo em primeira instância, antecipa-se que o ano de 2025 possa trazer novidades jurisprudenciais e uma maior clarificação em torno de questões processuais que podem condicionar a viabilidade deste tipo de ação, designadamente (i) em matéria de legitimidade ativa de algumas associações de consumidores, (ii) de independência e ausência de conflitos de interesse por parte de terceiros financiadores e até mesmo (iii) de admissibilidade de algumas ações coletivas por falta de homogeneidade da classe pretensamente representada, já para não falar (iv) da magna questão da necessidade de mandato por parte das associações de consumidores nas ações coletivas indemnizatórias em matéria de dados pessoais.
- Por último, o início da aplicação faseada das normas do Regulamento Europeu de Inteligência Artificial (Regulamento (EU) 2024/1689) a partir de 2 de fevereiro de 2025, que visa estabelecer um mercado interno harmonizado para a IA no Espaço Europeu, trará certamente novidades e potencialmente litigiosidade entre criadores, fornecedores e utilizadores de sistemas de IA.
4. Insolvência e reestruturações
Em Portugal, prevê-se que em 2025 se assista a um aumento do número de insolvências e reestruturações empresariais, sobretudo no setor industrial.
- No segundo semestre de 2024, registou-se um crescimento considerável do número de reestruturações e insolvências empresariais em Portugal. Este fenómeno fez-se sentir com particular intensidade na indústria, mas afetou muitos outros setores, como a agricultura ou a promoção imobiliária, e atingiu inclusivamente uma das maiores empresas do país, cotada na bolsa de Lisboa.
- É previsível que esta tendência continue ao longo do ano de 2025, por uma série de fatores, tais como o grau de endividamento das empresas portuguesas conjugado com o nível elevado das taxas de juro, o abrandamento da economia europeia com a consequente redução da procura externa para os produtos nacionais e ainda as possíveis repercussões das medidas protecionistas dos Estados Unidos da América.
- Do ponto de vista normativo, não é possível antecipar inovações ou desenvolvimentos legislativos de relevo, esperando-se apenas que a jurisprudência continue a aprofundar e esclarecer a interpretação das normas em vigor, resultantes da grande reforma operada em 2022.
5. Cláusulas contratuais gerais e contencioso em matéria de consumo
O ano de 2025 será, a exemplo do que aconteceu em 2024, mais um ano de intensa litigância, principalmente com a intensificação da intervenção das associações de consumidores, das iniciativas de financiamento privado neste domínio e a possibilidade de instauração de ações coletivas por entidades estrangeiras qualificadas ou ações coletivas transfronteiriças; em contrapartida, é de antever uma diminuição significativa dos litígios individuais em matéria de consumo e de condições gerais.
- No ano de 2025, prevê-se a continuação da tendência de aumento de litígios em matéria de clausulas contratuais gerais e consumo, em particular em matérias como práticas comerciais desleais, publicidade enganosa e incumprimento do normativo aplicável ao comércio eletrónico.
- Na verdade, o impulso principal deste tipo contencioso tem sido, por um lado, o crescente interesse da Autoridade de Segurança don Géneros Alimentícios (ASAE) em matérias relacionadas com o e-commerce e, por outro, o surgimento de associações de consumidores especializadas nestas matérias, recorrendo ao mecanismo das ações populares. Estas associações já deram entrada de dezenas de ações e antecipa-se que continuem a reforçar esta abordagem, abrangendo a generalidades dos setores de atividade, da banca ao retalho alimentar, bem como condutas diversas, desde cláusulas contratuais gerais, a incumprimento de normas de rotulagem e a publicidade enganosa.
- Ademais, como para 2024, a adoção do Decreto-Lei n.º 114-A/2023, de 5 de dezembro, que veio transpor a Diretiva (UE) 2020/1828 relativa a ações coletivas para proteção dos interesses dos consumidores, deverá levar a um aumento da litigância em matéria de consumo, tendo em conta o enquadramento específico do private litigation funding deste tipo de ações.
- Em consequência, antecipam-se riscos acrescidos de litigância, principalmente com a intensificação da intervenção das associações de consumidores, das iniciativas de financiamento privado neste domínio e a possibilidade de instauração de ações coletivas por entidades estrangeiras qualificadas ou ações coletivas transfronteiriças e, em contrapartida, uma diminuição significativa dos litígios individuais em matéria de consumo e de condições gerais.
- Neste sentido, várias associações apresentaram em novembro de 2024 uma declaração conjunta, incluindo um pedido de regulamentação do financiamento privado de litígios por terceiros a nível da EU[1]. A declaração conjunta sublinha preocupações em matéria de financiamento de litígios por terceiros, com a falta de supervisão e as suas potenciais implicações para o sistema judicial e a segurança económica. Pelo que é expectável que 2025 traga algum desenvolvimento nesta matéria também.
6. Ações coletivas e ilícitos concorrenciais
As nossas previsões em relação ao crescimento do número de ações coletivas em Portugal durante o ano de 2024 confirmaram-se em pleno, tendo sido instauradas dezenas de novas ações coletivas durante o ano que agora chega ao fim, com destaque para as ações coletivas instauradas contra os bancos sancionados pela Autoridade da Concorrência por ilícitos concorrenciais, cujo valor global ultrapassa os 8 mil milhões de euros, sendo nossa expectativa que o mercado continue animado em 2025, muito embora com tendência para estabilização no ritmo de instauração de novas ações, face às dúvidas que se foram entretanto levantando acerca das consequências práticas do recurso ao financiamento por terceiros neste tipo de ação.
- Tal como indicado na nossa nota com as projeções para o ano que agora chega ao fim, previa-se que 2024 seria marcado em Portugal (i) pelo crescimento no número de ações coletivas, (ii) por avanços em matéria de jurisprudência dos nossos tribunais superiores e (iii) por clarificações na legitimidade do recurso a financiamento de terceiros por parte das associações de consumidores que se vinham revelando mais ativas nesta área, na circunstância a Ius Omnibus e a Citizens' Voice.
- Pois bem, as nossas previsões vieram a confirmar-se. Para além do surgimento de diversas novas ações coletivas ao longo do ano de 2024, com destaque para aquelas instauradas pela Ius Omnibus contra diversos bancos que haviam sido visados numa decisão da Autoridade da Concorrência, entretanto confirmada pelo Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão de Santarém (TCRSS) e presentemente em fase de recurso, houve lugar a novas decisões dos nossos tribunais no âmbito dos processos do chamado Cartel dos Camiões, bem como algumas evoluções nas discussões em torno da viabilidade do recurso a financiamento de terceiros neste tipo de ações.
- Em termos de jurisprudência, enquanto se continuam a aguardar as primeiras decisões do Supremo Tribunal de Justiça nesta matéria, as decisões entretanto proferidas pela Relação de Lisboa[2] no contexto do chamado Cartel dos Camiões vieram no sentido da confirmação da existência de danos, mas rejeitando a quantificação oferecida pelas Autoras, fixando o sobrecusto em 5% através de estimativa judicial por aplicação do artigo 17.º n.º 1 da Diretiva dos Danos (Diretiva 2014/104/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Novembro de 2014) e do artigo 9.º, n.º 2 da Lei n.º 23/2018, de 5 de Junho que procede à respetiva transposição. Neste contexto, consideramos ser digna de referência uma sentença proferida pelo TCRSS[3], que pela primeira vez reduz o valor do sobrecusto de 5% para 3% do preço dos camiões, com base no argumento da repercussão ou pass-on, segundo o qual as empresas adquirentes dos camiões repercutiram, pelo menos em parte, o sobrecusto que suportaram nos preços cobrados pelos seus serviços aos respetivos clientes.
- Trata-se de uma importante evolução nas decisões que vinham sendo proferidas pelo TCRSS, que a nossa ver é ilustrativa do nível de complexidade a que as discussões e a prova sobre a quantificação do dano chegaram nos processos pendentes em Portugal, bem como da capacidade dos nossos tribunais para acompanharem e compreenderem as matérias em causa, sendo nossa expectativa que esta tendência para colocar a quantificação do dano no centro do debate neste tipo de ações se acentuará em 2025.
- Outra área onde são esperadas novidades em 2025 é a do recurso a financiamento de terceiros neste tipo de ação, como reflexo da aplicação prática das regras em matéria de independência das associações de consumidores e de gestão de conflitos de interesse face aos financiadores de litígios ou Third Party Funders introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 114-A/2023, de 5 de dezembro, que veio transpor a Diretiva (UE) 2020/1828 relativa a ações coletivas para proteção dos interesses dos consumidores.
- Efetivamente, apesar de se tratar aqui de um debate tão antigo como as primeiras ações deste tipo que deram entrada nos nossos tribunais em 2020, a aprovação de um regime legal que veio pela primeira vez concretizar um conjunto de regras e princípios elementares, como sejam a independência das associações de consumidores face aos financiadores, bem como o acautelamento das situações de conflito de interesse face aos interesses dos consumidores representados, veio dar novo folego ao debate, cujos resultados poderão impactar o modelo de negócio das associações de consumidores e seus financiadores e, como tal, dar lugar a ajustamentos na forma e no ritmo a que este tipo de ação vem crescendo no nosso país.
- Em qualquer caso, atrevemo-nos a antecipar que Portugal continuará a ser um dos países europeus mais dinâmicos em matéria de ações coletivas em 2025, impulsionado pela legislação favorável, pelo regime de opt-out aplicável à generalidade das ações coletivas - com exceção das ações coletivas indemnizatórias em matéria de proteção de dados, onde muito embora seja necessário um mandato, as ações se têm igualmente sucedido -, pela existência de associações de consumidores beligerantes e, claro, pela ação sancionatória da Autoridade da Concorrência.
- Neste particular, após um ano em que se assistiu a um decréscimo no número de casos de práticas restritivas, em resultado, por um lado, da entrada em funções de dois novos membros do Conselho de Administração (de um total de três), incluindo o presidente, que obrigou a uma reorganização interna e, por outro lado, das restrições à utilização de emails como prova por via das decisões do Tribunal Constitucional, é provável que o ano de 2025 seja acompanhado de uma retoma da atividade da Autoridade da Concorrência, o que por sua vez resultará em maior litigância.
- Quanto a este último ponto, preveem-se desenvolvimentos relevantes resultantes do facto de o ano de 2024 ter sido marcado por decisões (a nível judicial e constitucional) que permitiram dar uma aparente solução ao prolongado debate relativo à validade da apreensão de correios eletrónicos pela Autoridade da Concorrência, as quais vieram no sentido condicionar a validade de tais apreensões a autorização do juiz de instrução criminal, pelo que, é provável que a Autoridade da Concorrência retome várias das investigações em curso, que se encontravam pendentes da estabilização da jurisprudência a este respeito.
- Finalmente, é possível que a mudança na Comissão Europeia da comissária responsável pela concorrência, com Teresa Ribera a substituir Margrethe Vestager, conduza a alterações legislativas e de política que terão, necessariamente, repercussões a nível nacional. A nova comissária já anunciou, entre outros, uma aplicação ativa do regulamento Digital Markets Act (DMA) e do Foreign Subsidies Regulation (FSR), a simplificação da análise dos auxílios estatais e o seu alinhamento com a política industrial da UE, a revisão das regras de controlo das concentrações, em especial para abranger os cenários de “killer acquisitions" na sequência do acórdão do TJUE no processo Illumina/Grail. Estas intenções estão também em linha com o Relatório Draghi e são suscetíveis, especialmente no caso do DMA, de gerar ações de private enforcement.
7. Contencioso europeu
Em 2025 prevê-se a continuação da tendência de incremento de reenvios prejudiciais, litígios em matéria de auxílios de Estado e perspetiva-se, ainda, um incremento de litígios em temas de consumo, tecnologia e digital, em resultado da expansão legislativa de UE para estas áreas.
- Prevê-se que, em 2025, se assista a um aumento do volume de litígios em matéria de contencioso europeu, principalmente em domínios específicos como o consumo, proteção de dados, tecnologia e digital, em parte, conforme já aflorado, por se tratar de setores em rápida evolução e transformação, objeto de reformas legislativas recentes e forte intervenção dos reguladores.
- Tal como se verificou em 2024, prevê-se um número crescente de questões prejudiciais submetidas pelos tribunais nacionais ao Tribunal de Justiça da UE. Em matérias específicas (e.g., concorrência, consumo, fiscalidade) os tribunais portugueses têm remetido cada vez mais questões prejudiciais para o Tribunal de Justiça da UE.
- Estão atualmente em curso um conjunto de reenvios muito relevantes em matéria de prova, de acesso a documentos, de compatibilização das normas de concorrência com o enquadramento aplicável ao desporto, prevendo-se futuros reenvios, por exemplo, em matéria de legitimidade para propor ações de private enforcement, cujo desfecho será muito importante neste âmbito.
- Esta é uma tendência que parece ser comum à maioria dos Estados-Membros, em resultado da crescente atividade legislativa, orientações e regras europeias em geral que se aplicam a nível nacional.
8. Contencioso ESG
Antecipa-se que as crescentes obrigações de divulgação pelas empresas de informações em matérias ESG (Environmental, Social and Governance) promovam um maior escrutínio dos stakeholders e associações ambientalistas, que, em Portugal, estão a ser cada vez mais ativas em litigância em matérias ESG contra o Estado, esperando-se que estas iniciativas venham a ser estendidas também relativamente a entidades do setor privado.
- Embora a Diretiva europeia relativa ao relato de sustentabilidade das empresas (Corporate Sustainability Reporting Directive ou CSRD, a que se refere a Diretiva (UE) 2022/2464, de 14 de dezembro) tenha entrado em vigor em janeiro de 2024, a sua transposição para a lei portuguesa ainda não foi concluída até 2024, o que, seguramente, será levado a cabo em 2025, acarretando novas exigências em termos de divulgação e relato para as empresas abrangidas em matérias de ESG. De acordo com a CSRD, o relato deverá passar a seguir critérios mais rigorosos e detalhados, estabelecidos pelas Normas Europeias de Relato de Sustentabilidade (European Sustainability Reporting Standards ou ESRS), conforme definido no Regulamento Delegado (UE) 2023/2772.
- Em qualquer cenário, em 9 de dezembro de 2024, a CMVM já recomendou que as empresas sujeitas à sua supervisão (às quais os novos deveres se aplicariam a partir de 1 de janeiro de 2025) façam os melhores esforços para observar as exigências previstas na CSRD.
- Por outro lado e em qualquer caso, as grandes empresas que sejam entidades de interesse público (EIP) e que excedam o número médio de 500 empregados (e as empresas-mãe de grandes grupos que, sendo EIP, superem o mesmo limite de 500 empregados em base consolidada) estão já abrangidas pela Diretiva de Relato Não Financeiro (Non Financial Reporting Directive ou NFRD), sendo que a CSRD representa uma evolução relevante no reporte de informações sobre sustentabilidade.
- Acresce que a publicação em julho de 2024 da Diretiva europeia relativa ao dever de diligência das empresas em matéria de sustentabilidade (Diretiva (UE) 2024/1760, do Parlamento Europeu e do Conselho ou CS3D) confirma a tendência para as crescentes obrigações em matérias ESG (ainda que as sociedades apenas tenham de aplicar estas regras de forma gradual a partir de julho de 2027, dependendo da sua dimensão e volume de negócios).
- Este quadro de maior exigência em matérias ESG, conjugado com a cada vez maior atividade de associações e movimentos climáticos perante os tribunais nacionais e estrangeiros, antecipa uma crescente tendência de litigância ESG e a aplicação de sanções para o incumprimento das obrigações nesta área, até porque o acesso à informação empresarial relativa às matérias ESG é (e será) cada vez maior, o que promove um maior escrutínio e sindicância de todos os stakeholders.
- Ainda em matéria de ESG, em 2025, esperam-se desenvolvimentos da primeira ação popular por inação climática instaurada pelas associações ambientalistas Último Recurso, Quercus e Sciaena contra o Estado português. Em 19 de setembro de 2024, o Supremo Tribunal de Justiça proferiu um Acórdão a revogar a sentença de 1.ª Instância, que havia julgado esta ação improcedente e considerou que o pedido para que o Estado adote as medidas necessárias ou suficientes para assegurar, em relação aos valores de 2005, uma redução até 2030 de, pelo menos, 55% da emissão de gases de efeito de estufa (não considerando o uso do solo e florestas), não é ininteligível, estando antes em causa um pedido genérico, pelo que o Supremo Tribunal de Justiça convidou as associações ambientalistas a especificar quais as medidas que estas pretendem ver adotadas no contexto do pedido genérico formulado na ação (processo n.º 28650/23.0T8LSB.S1). As associações ambientalistas já responderam a este convite, tendo especificado 50 medidas que devem ser adotadas pelo Estado, pelo que, em 2025, esta ação marco deverá ter desenvolvimentos relevantes.
- Acresce que, em 20 de novembro de 2024, a associação Último Recurso instaurou contra o Ministério do Ambiente e Energia junto do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa uma ação administrativa para intimação da prestação de informações relativamente à aplicação da Lei de Bases do Clima, com vista a obter o acesso a documentos, que vão desde os orçamentos de carbono, ao estado da revisão do regime jurídico dos hidrocarbonetos (que deveria ter ocorrido até fevereiro de 2023) e às metas setoriais de redução de emissões de gases de efeito de estufa (processo n.º 44758/24.1BELSB). Em 2025, esta ação terá desenvolvimentos relevantes, incluindo nomeadamente a contestação do Ministério do Ambiente e Energia.
- Neste contexto, é possível que a litigância em matérias ESG seja, igualmente, transposta para o setor privado, em Portugal, em 2025. Neste quadro, a circunstância de que, em 12 de novembro de 2024, o Tribunal da Relação de Haia tenha proferido uma decisão no “caso Shell" a revogar a decisão de 1.ª Instância que havia julgado procedente a ação instaurada por uma associação ambientalista não excluirá outras iniciativas de litigância em matéria ESG, até porque as associações ambientalistas retirarão lições para o futuro da fundamentação detalhada do citado Acórdão Tribunal da Relação de Haia.
9. Contencioso setor energético
Em 2025 espera-se a consolidação da jurisprudência do Tribunal Constitucional no sentido da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral da aplicação do regime jurídico da Contribuição Extraordinária sobre o Setor Energético (CESE) aos operadores das redes de transporte, de distribuição e de armazenamento subterrâneo de gás natural.
- A Contribuição Extraordinária sobre o Sector Energético (CESE) foi criada pela Lei do Orçamento do Estado para 2014, tendo o seu regime sido anualmente alterado e a sua vigência prorrogada nas Leis do Orçamento do Estado subsequentes, inclusive para 2025.
- A CESE foi criada como um tributo aplicável a algumas empresas do setor da energia, com incidência nos subsetores de eletricidade, gás natural e petróleo, cuja receita seria consignada ao financiamento de mecanismos que promovessem a sustentabilidade do sector energético.
- Pese embora os operadores económicos sujeitos passivos da CESE terem vindo a disputar a constitucionalidade deste tributo desde o início da sua vigência, o tema da constitucionalidade foi sempre decidido em favor da Autoridade Tributária até 2023.
- Em 2023 surgiram os primeiros acórdãos que, por violação do artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa (princípio da igualdade), julgam inconstitucional o regime jurídico da CESE aplicável ao ano de 2018, na parte em que este determina que o tributo incide sobre o valor dos elementos do ativo das concessionárias das atividades de transporte, de distribuição ou de armazenamento subterrâneo de gás natural.
- A jurisprudência do Tribunal Constitucional relativamente à CESE aplicável no ano de 2018 não se revelou, contudo, uniforme. Ao longo de 2023 e 2024 foram prolatados acórdãos quer no sentido da constitucionalidade, quer no sentido da inconstitucionalidade, do regime da CESE aplicável ao ano de 2018.
- Sucede, porém, que em 2024 foram prolatados os primeiros acórdãos do Tribunal Constitucional que se pronunciaram sobre a conformidade com a Constituição do regime jurídico da CESE aplicável aos operadores de transporte, distribuição e armazenamento subterrâneo de gás natural nos anos de 2019 e 2020, e todos eles foram no sentido da inconstitucionalidade do tributo na parte em que se determina que o mesmo incide sobre o valor dos elementos do ativo.
- Assim, uma vez que a norma (artigo 2.º, alínea d) do regime jurídico da CESE) já foi considerada inconstitucional para 2019 em, pelo menos, 3 acórdãos com base nos mesmos fundamentos (violação do princípio da igualdade), espera-se que em 2025 possa haver lugar à fiscalização abstrata sucessiva da constitucionalidade da norma e que o Tribunal Constitucional decida a sua inconstitucionalidade com força obrigatória geral.
- A confirmar-se esta expectativa, de 2025 em diante a CESE deixará de poder ser cobrada às concessionárias das atividades de transporte, de distribuição ou de armazenamento subterrâneo de gás natural e os casos pendentes em juízo relativos aos anos de 2019 até 2024 deverão ser decididos em favor dessas concessionárias.
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[1] Disponível em https://insuranceeurope.eu/downloads/3238/joint-statement-tplf/TPLF+joint%20statement%20-%20November%202024.pdf
[2] Acórdão de 16 de Outubro de 2024, proferido no processo n.º 71719.6YQSTR.L1.
[3] Sentença do TCRSS proferida em 20 de Abril de 2024, no processo n.º 58/19.9YQSTR, presentemente em fase de recurso perante a Realção de Lisboa.