A Arbitragem Tributária no Ordenamento Legal Português

Tito Arantes Fontes.

Março 2007 Newsletter DGAE


Nos termos do disposto no art. 1.º da Lei da Arbitragem Voluntária, qualquer litígio que não respeite a direitos indisponíveis pode ser cometido pelas partes, mediante convenção de arbitragem, à decisão de árbitros. Dispõe o n.º 4 do mesmo artigo que o Estado e outras pessoas colectivas de direito público podem celebrar convenções de arbitragem, se para tanto forem autorizados por lei especial ou se elas tiverem por objecto litígios respeitantes a relações de direito privado. 

            Embora as relações entre a administração fiscal e o contribuinte sejam paritárias e sujeitas ao princípio da igualdade de armas, o Estado aparece nesta relação jurídica no desempenho de umas das mais primordiais funções de interesse público: a de arrecadar impostos. Com efeito, os impostos são um dos principais instrumentos do poder político (já dizia Benjamin Franklin que neste mundo nenhuma coisa é certa com excepção da morte e dos impostos). E os direitos emergentes da relação tributária são, por natureza, direitos indisponíveis. A indisponibilidade dos direitos que brotam desta relação têm uma diversa fundamentação, consoante a perspectiva que se adopte. Enquanto que a indisponibilidade dos direitos tributários por parte da administração fiscal decorre do princípio do Estado de Direito democrático e do princípio da igualdade, a indisponibilidade de tais direitos pelo contribuinte resulta fundamentalmente de um modelo garantístico e paternalista.  

            A relação jurídica fiscal é, no essencial, uma relação jurídica de crédito, dotada, contudo, de um conjunto de características especiais, entre elas a indisponibilidade ou irrenunciabilidade do crédito fiscal, que se traduz na impossibilidade de conceder moratórias, perdoar a dívida ou alterar os modos admitidos para o seu pagamento. 

            Esta indisponibilidade determina, pois, que nenhuma das partes da relação jurídica tributária possa livremente dispor da relação do crédito, que não pode ser alterada por simples acordo entre as partes. Nem o Estado (Administração Fiscal), na sua qualidade de sujeito activo da relação, nem o contribuinte, enquanto sujeito passivo da obrigação de imposto, podem dela dispor, estando antes limitados, na sua actuação, aos limites estritos do disposto na lei. 

            Pela parte da Administração Fiscal, está-lhe vedado perdoar ou reduzir o crédito de que é titular ou alterar a condições de pagamento do mesmo crédito, salvo raras excepções. Ao contribuinte, pela outra parte, não é permitido ceder, vender, doar, ou por qualquer outra forma celebrar qualquer tipo de negócio que tenha por objecto a dívida ou o crédito fiscal. 

            Como antes se aflorou, as razões de ser desta indisponibilidade são provavelmente diferentes, dependendo da perspectiva da qual se analisa a questão. No que respeita à indisponibilidade do crédito por parte da Administração Fiscal esta é, a nosso ver, determinada por razões de certeza e segurança jurídica e visa garantir que há um tratamento igual dos contribuintes. A irrenunciabilidade do crédito por parte do contribuinte não tem seguramente as mesmas motivações. Ainda que obviamente com limitações, por forma a evitar que o contribuinte se veja na prática compelido a renunciar a eventuais créditos fiscais que detenha sobre o Estado em situações em que tal não pareça admissível, não existem fundamentos de certeza, segurança e igualdade que, a nosso ver, exijam um mesmo nível de indisponibilidade do crédito de que é titular o contribuinte. 

            Importa ainda notar que o crédito fiscal não é sempre e necessariamente irrenunciável, comportando a lei vigente diversas excepções a esta regra. Desde logo, e como manifestação dessa excepção, surge a possibilidade de pagamento em prestações, nas situações legalmente admissíveis. Também como exemplo da possibilidade de renúncia temos diversos diplomas de regularização de dívidas, que consagram regimes de acordo com os quais se permite ao contribuinte efectuar o pagamento da dívida sem juros (ainda que seja discutível a questão de saber se nestes casos existe um renúncia por parte da Administração Fiscal, uma vez que apenas os juros, e não o capital, são objecto de perdão).  

            No entanto, o facto de tais direitos serem indisponíveis não constitui, só por si, um obstáculo inultrapassável à consagração da arbitragem no direito fiscal. É que o critério da disponibilidade acolhido pela LAV não traduz uma qualquer imposição de direito natural, nem de resto reflecte uma norma ou princípio constitucional. Acima de tudo está subjacente uma opção legislativa que, no entanto, deixa antever algumas das preocupações e preconceitos do legislador. 

            Os direitos indisponíveis não podem ser afastados pelas partes. São direitos irrenunciáveis, traduzidos na maior parte das vezes em normas imperativas. Mas isto apenas significa que, na arbitragem tributária, os árbitros estariam obrigados a aplicar o direito constituído, sendo-lhes, portanto, vedado o recurso ao julgamento pela equidade. A admissão da arbitragem fiscal implicaria, portanto, a inaplicabilidade do disposto na segunda parte do art. 22.º da LAV. Este é, na verdade, o único limite que vemos à consagração da arbitragem tributária no ordenamento legal português, de um ponto de vista estritamente jurídico. 

            No entanto, há quem receie que, por via da arbitragem, as partes consigam contornar as imposições legais, bastando para tanto designarem um árbitro que, de comum vontade, decida de acordo com o pretendido.  

            Se é certo que o tema da justiça fiscal é particularmente delicado, também não nos parece que a discussão em torno da admissibilidade da arbitragem tributária se possa – ou deva – fazer exclusiva ou principalmente em torno de preocupações de aparência. O quase monopólio do Estado na administração da Justiça suscita, como sabemos, iguais dúvidas. Longe vai o tempo em que o juízes togados eram sinónimo de ciência certa e, do mesmo modo, a justiça togada pode ser vista como funcionalizada pelo Estado, sujeita a pressões do poder político e da administração fiscal. 

            Em boa verdade, a experiência demonstra que as sentenças arbitrais são tão ou mais escrupulosas do que as dos tribunais judiciais. 

            Conscientes, mas não rendidos a teorias da conspiração, estão aqueles que admitem a arbitragem em direitos indisponíveis mas entendem necessárias garantias ou condições de credibilidade. Dependendo da variante, são avançadas sugestões como, por exemplo, a elaboração de um código deontológico ou o desenvolvimento de um regime próprio de impedimentos e suspeições. Pode-se equacionar soluções mais rebuscadas como a obrigatoriedade de recorrer a um centro de arbitragem institucionalizado sob a supervisão do Conselho Superior da Magistratura ou a de estabelecer um título público e obrigatório de árbitro, dependente de especiais qualificações ou requisitos de idoneidade. 

            Estas hipóteses, porventura demasiado elaboradas, estariam além da tradicional discussão que tem tido lugar, mas integrar-se-iam num contexto mais amplo de privatização da justiça. E a par das preocupações com a salvaguarda da credibilidade e da idoneidade dos árbitros, encontram-se as que visam minimizar o erro judiciário.

            Relativamente à prevenção contra o erro judiciário, por certo que se encontram argumentos contra a arbitrabilidade de litígios de natureza fiscal. Não se pode desconsiderar que os juízes togados estão sujeitos a requisitos de formação que a própria lei reconhece como necessária. São obrigatoriamente formados em Direito e, para além da licenciatura, passam por uma formação acrescida no CEJ e por um período de estágio. E - convém desmistificar - a formação comum ou mínima não importa a centralização da justiça. Pelo contrário, a sociedade actual cada vez mais exige que a actividade privada dependa de formação técnica específica, de experiência e de requisitos de idoneidade. Vivemos no mundo dos cursos, das acções de formação, dos alvarás, das licenças para o exercício de actividades.  

            Ora, na medida em que a indisponibilidade dos direitos fiscais também resulta, como já se disse, de critérios de igualdade material entre os contribuintes, a prevenção contra o erro judiciário terá de ser considerada. Mas também este risco acrescido é ultrapassável, nomeadamente pelo estabelecimento do princípio da irrenunciabilidade do direito ao recurso. 

            Mas é na óptica de uma concepção de justiça privada que alguns encontram óbices à admissão da arbitragem fiscal. Sendo virtualmente impossível democratizar a justiça arbitral, há quem se interrogue sobre a legitimidade da administração fiscal se sujeitar a despesas acrescidas em proveito de um processo mais célere, ou até em proveito de uma decisão relatada por pessoas especialmente qualificadas, quando apenas alguns contribuintes podem beneficiar de semelhante privilégio. É que se a justiça privada se justifica no âmbito da autonomia privada, pode não se justificar no âmbito de relações de cariz exclusivamente público. Porque é que quem pode suportar os custos acrescidos de uma arbitragem terá direito a uma justiça fiscal mais célere? Se uma minoria pode, em função da sua condição económica, beneficiar de uma justiça célere e especializada, com o comprometimento do Estado na assunção de tais custos acrescidos, pode suscitar-se um problema de igualdade material. E com que fundamento pode o Estado incorrer em despesas acrescidas com a justiça privada quando já sustenta, a custo dos contribuintes, os tribunais “públicos”? 

            Esta questão já foi ultrapassada, e bem, no contencioso administrativo (em que se admite o recurso aos tribunais arbitrais mesmo quando o Estado actua nas suas prerrogativas de direito público – vide art. 180.º do CPTA). De facto, o argumento pelo qual o Estado incorre em custos acrescidos em desfavor dos contribuintes que não têm meios económicos para recorrer à arbitragem é, parece-nos, uma tautologia. É que o recurso à arbitragem, mais ou menos democratizada, liberta os tribunais em benefício dos seus “utentes”. Não obstante, é insofismável que a nomeação de árbitros pela administração fiscal pode constituir mais um simpático “cargo” a conceder. Admite-se, portanto, quer sejam tomadas especiais cautelas relativamente aos montantes máximos de honorários. 

            Em suma, a arbitragem tributária no ordenamento legal português pode e deve ser consagrada, mas, atendendo à especial natureza dos direitos em questão, deverá ser rodeada de algumas cautelas. Será seguramente necessário obrigar os árbitros à aplicação do direito constituído, mas outras medidas deverão ser equacionadas, como a irrenunciabilidade do direito ao recurso, o desenvolvimento do regime de suspeições e impedimentos ou mesmo a elaboração de um Código Deontológico.

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