Produção de efeitos do regime dos residentes não habituais: o atraso na inscrição como RNH deverá implicar que o regime produza efeitos apenas para o futuro?

Joana Carvalhinho, António Castro Caldas, Filipe Romão.

19/05/2025 Uría Menéndez (uria.com)


Ainda que o Regime dos Residentes Não Habituais (“RNH”) tenha sido revogado pela Lei de Orçamento de Estado para o ano de 2024, o seu regime transitório permitiu que novos contribuintes pudessem começar a beneficiar daquele regime durante o ano de 2024 e que qualquer contribuinte que beneficiasse do regime, mantivesse o benefício fiscal durante o período legalmente previsto de dez anos, o que implica que haverá contribuintes a beneficiar deste regime até 2034.

Uma das questões com maior prevalência em discussão junto dos Tribunais Arbitrais nesta matéria tem sido o direito dos contribuintes beneficiarem do regime de RNH quando cumpram os respetivos requisitos materiais, isto é, a residência fiscal em Portugal e a sua ausência nos cinco anos anteriores, independentemente de o contribuinte solicitar a sua inscrição como RNH até 31 de março do ano seguinte ao da alteração da sua residência fiscal em Portugal.

Sendo o RNH um benefício fiscal automático - que não carece de reconhecimento por parte da administração tributária -, têm os tribunais entendido que a inscrição do contribuinte como RNH tem natureza meramente declarativa, podendo o direito ao benefício fiscal existir se os respetivos requisitos materiais estiverem cumpridos, independentemente do pedido de inscrição ao abrigo daquele regime ter sido apresentado em momento posterior ao devido.

Não obstante as muitíssimas decisões arbitrais proferidas sobre esta matéria, a Autoridade Tributária e Aduaneira (“AT”) continua a negar o benefício fiscal àqueles contribuintes que solicitem o seu registo como RNH após o dia 31 de março do ano seguinte à sua mudança para Portugal, o que tem multiplicado os processos judiciais pendentes, com vista à anulação de liquidações de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”) emitidas pela AT sem a aplicação do benefício fiscal dos RNH.

Recentemente, o Supremo Tribunal Administrativo (“STA”) proferiu dois acórdãos dos quais parece resultar  que o atraso por parte do contribuinte em apresentar pedido de inscrição como RNH deveria determinar que este só poderia ser tributado ao abrigo do regime de RNH para o futuro, isto é, após o pedido de inscrição como RNH (cf. Acórdãos de 15/01/2025,  processo n.º 01750/22.6BEPRT e de 29/05/2024, processo n.º 0842/23.9BESNT, ambos proferidos pela 2.ª secção do STA).

Parecendo estar já definitivamente descartada pelos tribunais a tese inicialmente defendida pela AT nos termos da qual os contribuintes que solicitassem a sua inscrição como RNH após 31 de março do ano seguinte ao do início da sua residência fiscal em Portugal estariam definitivamente excluídos da aplicação do regime, e estando já consolidado na jurisprudência que este benefício fiscal é automático, centra-se agora a discussão desta matéria no momento da produção de efeitos do benefício fiscal.

De acordo com os acórdãos do STA indicados, proferidos apenas no contexto de processos em que se sindicava a legalidade da recusa por parte da AT de inscrição como RNH e não de processos de impugnação de liquidações de IRS (o que nos parece relevante), o STA refere, ainda que de passagem e não no segmento decisório (pois não foi sobre a questão do momento de produção de efeitos do benefício que o STA foi chamado a pronunciar-se), que a inscrição tardia do contribuinte como RNH inviabilizaria a aplicação retroativa do estatuto, devendo a sua aplicação iniciar-se no ano em que o contribuinte procedeu ao pedido de inscrição (ou seja, o benefício fiscal deveria aplica-se apenas para o futuro).

Na nossa opinião, a descrita posição do STA (que tem vindo a ser seguida em algumas decisões arbitrais recentes) contraria o disposto na Lei. De facto, como o STA começa justamente por reconhecer, o artigo 16.º do Código do IRS[1] estabelece que o direito a ser tributado como RNH depende do preenchimento dos requisitos materiais do regime - tornar-se residente em Portugal e não o ter sido nos cinco anos anteriores -, pelo que é forçoso concluir que a inscrição prevista no n.º 10 daquele artigo tem natureza declarativa, e não constitutiva, não podendo, portanto, inviabilizar a aplicação do estatuto de RNH.

Ora, perante um benefício fiscal com natureza declarativa, a regra geral prevista no Estatuto dos Benefício Fiscais determina que “o direito aos benefícios fiscais deve reportar-se à data da verificação dos respectivos pressupostos, ainda que esteja dependente de reconhecimento declarativo pela administração fiscal ou de acordo entre esta e a pessoa beneficiada, salvo quando a lei dispuser de outro modo” (cf. artigo 12.º). Assim, no caso dos RNH, o benefício deveria iniciar a sua aplicação quando os respetivos pressupostos - que AT e Tribunais concordam ser a residência fiscal em Portugal e a sua ausência nos cinco anos anteriores - se encontrem cumpridos, isto é, no momento em que o contribuinte altera a sua residência fiscal para Portugal.  

Acresce que, não prevendo a Lei a possibilidade de vedar aos contribuintes o acesso ao regime dos RNH, não poderão a AT ou os Tribunais negar o acesso ao benefício fiscal em dado ano com fundamento no atraso no pedido de registo como RNH, restando  a possibilidade de aplicação de sanções pecuniárias ou outras medidas de menor impacto, caso se verifiquem faltas de natureza declarativa.

Só assim se respeitarão os efeitos meramente declarativos que a Lei atribui ao pedido de inscrição como RNH pelos contribuintes.

Embora num dos mencionados acórdãos do STA o Tribunal entenda não poder ser assim por apenas no momento do pedido de inscrição como RNH a AT passar a ter na sua posse os dados necessários à verificação dos pressupostos de RNH, entendemos não ser assim, já que na declaração de IRS entregue pelo contribuinte encontram-se variadíssimos elementos declarativos indicados pelo contribuinte, entre os quais o estatuto de RNH (através do anexo L da declaração Modelo 3 de IRS), que a AT tem a oportunidade de validar antes da emissão da liquidação de IRS correspondente (processo de verificação esse que, aliás, a AT leva a cabo a respeito de tantos outros elementos declarados pelos contribuintes). Acresce que o contribuinte pode também facultar esses dados por outros meios, como sejam a reclamação graciosa ou revisão oficiosa podendo a AT verificar esses pressupostos já depois da liquidação do imposto. Face a este contexto, acompanhamos um processo de recurso de oposição de julgados que tem o potencial de clarificar definitivamente a questão, sendo agora apreciado pelo Pleno da Secção de Contencioso Tributário do STA. Diferentemente das decisões anteriores, circunscritas a uma única secção, este acórdão abrangerá a totalidade dos juízes conselheiros dessa área, circunstância que poderá alterar o rumo da jurisprudência. A confirmar-se esta linha argumentativa, o atual processo no STA pode reverter o entendimento menos favorável, trazendo maior segurança a inúmeros contribuintes que, por desconhecimento ou outras razões, não conseguiram efetuar o seu pedido de inscrição como RNH até 31 de março do ano subsequente ao início da sua residência em Portugal.

Tendo acompanhado de perto esta controvérsia jurisprudencial, acreditamos que a clarificação da posição do STA contribuirá para reforçar a segurança jurídica, valorizando o facto de o RNH visar atrair e fixar em Portugal contribuintes altamente qualificados e com potencial de investimento, e não criar barreiras formais que possam frustrar esse propósito.

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[1] Na versão em vigor antes das alterações introduzidas pela Lei de Orçamento de Estado para 2024, embora como já indicámos a versão anterior continue em vigor para os contribuintes que beneficiem do RNH, ao abrigo do regime transitório da lei.

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