O Novo Código dos Contratos Públicos

Daniel Miranda da Silva.

2008 Vida Imobiliária, n.º 121


O ordenamento jurídico português contará, a partir do próximo verão, com um novo e aguardado regime em matéria de contratos públicos. O novo código, aprovado através do Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de Janeiro, vem por termo a uma lacuna que, de há algum tempo a esta parte se faz sentir nesta matéria, sendo, além do mais, o reflexo da progressiva evolução e acentuada importância que, ao longo das últimas décadas, têm marcado o domínio dos contratos e da contratação pública em Portugal.

Designado por “Código dos Contratos Públicos” (“CCP”), este é um diploma abrangente – para além de extenso, contando com 473 artigos - cujo escopo regulatório não se limita à resolução de questões de natureza procedimental, antes dispondo, igualmente, a respeito do regime substantivo dos contratos administrativos.

De entre as cinco partes em que o CCP se divide, assumem particular importância as três primeiras, concernentes, respectivamente, ao âmbito de aplicação do Código, aos tipos e escolhas de procedimentos pré-contratuais e de formação do contrato, e, por fim, ao regime substantivo dos contratos administrativos.

Observa-se, assim, que o legislador não se limitou a transpor as Directivas Comunitárias n.os 2004/17/CE e 2004/18/CE, ambas do Parlamento Europeu e do Conselho, de 31 de Março, aplicáveis em matéria de procedimentos pré-contratuais, aproveitando esta oportunidade para pôr  fim à dispersão legislativa que caracteriza os regimes substantivos presentemente em vigor.

Âmbito de Aplicação do CCP

O CCP apresenta um âmbito de aplicação variável em função das diferentes partes em que se compõe.

No que respeita às regras referentes à contratação pública, integradas na Parte II do CCP, resultam abrangidos todos os contratos públicos, independentemente da sua designação e natureza, desde que as entidades adjudicantes dos mesmos integrem a Administração directa ou indirecta do Estado, Regiões Autónomas ou Autarquias Locais.

Já o regime substantivo plasmado na parte III do Código, apresenta um escopo de aplicação bastante mais reduzido. Com efeito, em matéria de regulação substantiva o legislador limitou-se a regular o conteúdo de contratos com a natureza de contrato administrativo, correspondendo esta parte do Código, não exclusivamente, embora no essencial, a uma reformulação e sistematização, de quanto hoje é estatuído nos regimes de contratação em matéria de empreitadas de obras públicas e de locação e aquisição de bens móveis e serviços

Salienta-se, ainda, no que respeita ao âmbito de aplicação do CCP, o facto de se excluir a aplicação deste diploma quanto aos designados contratos «in house» (contratos a celebrar entre uma entidade adjudicante e uma empresa sua associada), e de se restringir a sua aplicação no que respeita aos sectores da água, da energia, dos transportes e dos serviços postais.

Procedimentos Pré-Contratuais

Em matéria de tipos de procedimentos pré-contratuais, o CCP reduz a cinco o seu número: ajuste directo; negociação com publicação prévia de anúncio; concurso público; concurso limitado por prévia qualificação; e, por fim, diálogo concorrencial.

Não deixaram, não obstante, de ser criados alguns instrumentos procedimentais especiais, como é o caso dos concursos de concepção e dos sistemas de aquisição dinâmicos, destinados a responder a necessidades concretas sentidas em algumas áreas da contratação pública (e.g. em domínios artísticos, do ordenamento do território e do planeamento urbanístico).

Realça-se, igualmente, a importância da escolha do procedimento pré-contratual enquanto parâmetro de delimitação dos valores máximos dos contratos a celebrar. Com efeito, o CCP obedece a uma lógica diferente daquela que rege o actual regime jurídico de contratação pública, sendo agora o valor máximo do contrato a adjudicar determinado em função do procedimento previamente elegido.

No que respeita aos contratos de empreitada de obras públicas a escolha do ajuste directo (e a inerente possibilidade de não se adoptar um procedimento concursal - seja concurso público, ou concurso limitado por qualificação prévia) passará agora a limitar o valor máximo do contrato a celebrar a € 150.000 - caso a entidade adjudicante se integre na administração directa ou indirecta do Estado, das Regiões Autónomas e das Autarquias Locais - ou a  € 1.000.000 - no caso de a entidade adjudicante ser o Banco de Portugal ou outra entidade sujeita ao CCP, que não as acima referidas.

Quanto aos contratos de locação ou de aquisição de bens móveis e de aquisição de serviços, por sua vez, a escolha do ajuste directo limita o valor máximo do contrato a celebrar a € 75.000 ou a  € 206.000, variando os limites em função da entidade adjudicante. Neste tipo de contratos foi ainda estabelecido o valor de € 25.000 como valor limite para o ajuste directo sempre em que estejam em causa contratos de aquisição de planos, de projectos ou de criações conceptuais nos domínios da arquitectura ou da engenharia (embora, neste caso, o contrato tenha de ser celebrado por entidades que integrem a Administração directa ou indirecta do Estado, Regiões Autónomas ou Autarquias Locais).

 

Note-se que, relativamente a este tipo de contratos (obras públicas e locação e aquisição de bens e serviços), a escolha de um procedimento de concurso público, ou de concurso limitado por qualificação prévia não é, no entanto, suficiente para eliminar quaisquer limites de valor do contrato a celebrar.

Com efeito, apenas mediante prévio anúncio publicado no Jornal Oficial da União Europeia logrará a entidade adjudicante não limitar à partida o valor do contrato a celebrar.

 

Finalmente, e no que concerne aos restantes contratos sujeitos ao CCP (excepto nas concessões de obras públicas, concessões de serviços públicos e contratos de sociedade, em relação aos quais é irrelevante o valor do contrato, estando estes em regras sujeitos a concurso público, concurso limitado ou procedimento de negociação) a escolha do ajuste directo implicará um limite de valor de contrato de € 100.000.

Em matéria procedimental deve ainda dar-se uma breve nota da aposta do legislador na contratação através de meios electrónicos, nomeadamente, consagrando-se a possibilidade de celebração de contratos de locação ou de aquisição de bens móveis, ou de contratação de serviços através do recurso a leilões electrónicos.

O Regime substantivo dos contratos administrativos - em especial o contrato de Empreitada

No que respeita à Parte III do CCP e ao regime substantivo dos contratos administrativos que aí se encontra plasmado, o legislador optou por estabelecer um conjunto de regras gerais aplicáveis a todos aqueles contratos (sendo que aquele conjunto de normas revogará o disposto nos artigos 178.º a 189.º do Código do Procedimento Administrativo).

Além disso, pela primeira vez, são integrados num só diploma os principais regimes aplicáveis a contratos de empreitada de obras públicas, concessão de obras e serviços públicos e locação e aquisição de bens móveis.

Foi manifesta a intenção do legislador em criar uma maior responsabilização dos intervenientes na relações contratuais administrativas, bem como em alcançar uma mais clara repartição de riscos na execução dos contratos.

É também evidente a desregulamentação em matéria de execução dos contratos administrativos, tornando-se este num domínio de prevalecente autonomia contratual das partes.

No que respeita aos contratos especialmente regulados merecem especial apreciação algumas novidades trazidas pelo regime aplicável aos contratos de empreitada.

Assim, em primeiro lugar, chamamos a atenção para a alteração dos limites quantitativos dos trabalhos a mais nos contratos de empreitada de obras públicas.

De acordo com o novo regime apenas serão admitidos os trabalhos a mais que, somados ao preço de eventuais anteriores trabalhos a mais e deduzidos do preço de eventuais trabalhos a menos, não excedam 5% do preço contratual.

 O limite de 25%, actualmente aplicável a qualquer empreitada de obra pública, passará a ser aplicável apenas quando estejam em causa obras cuja execução seja afectada por condicionalismos naturais com especiais características de imprevisibilidade (como são os casos das empreitadas para obras marítimas e portuárias ou para a construção de túneis).

De todo o modo, a soma do preço atribuído aos trabalhos a mais não pode, em caso algum, exceder 50% do preço contratual. No caso de este limite ser excedidos, os trabalhos a mais passam a ser objecto de contrato celebrado na sequência de novo procedimento de contratação.

Em segundo lugar, deve ter-se em conta a nova distribuição do risco em matéria de responsabilidade por erros e omissões. A solução adoptada, pretendendo responsabilizar os empreiteiros pela apreciação dos elementos que por si tenham sido elaborados ou que lhes hajam sido disponibilizados, pode afigurar-se fortemente penalizadora para os empreiteiros que não logrem detectar em tempo útil eventuais erros ou omissões que lhes competisse detectar.

Contrariamente ao que sucede no actual regime, em que esta matéria apenas é tratada a respeito da execução contratual, o regime plasmado no CCP estabelece, em sede pré-contratual, disposições com vista a estabelecer uma clara distribuição do risco entre contraente público adjudicatário.

Concretamente, estatui-se no CCP que os concorrentes devem listar, expressa e inequivocamente, no prazo correspondente a cinco sextos do prazo cominado para a apresentação das propostas, todos os erros ou omissões do caderno de encargos, mais sendo obrigados a indicar quais os termos e respectivo valor do suprimento de cada um dos erros ou das omissões aceites pela entidade adjudicante.

Quanto à responsabilidade por erros e omissões, o empreiteiro passará a assumir o risco inerente à realização de trabalhos de suprimento de erros e omissões que não haja detectado na fase de formação do contrato (quando tal lhe fosse exigível) ou que, numa fase posterior do contrato, não haja identificado  no prazo de 30 dias a contar da data em que o erro ou omissão fosse detectável.

Além das novidades que acima descrevemos, cumpre-nos ainda salientar dois pontos de grande importância em matéria de contratos administrativos.

Por um lado, evidencia-se a intenção de criar um regime de maior equilibro no que respeita às relações entre a entidade adjudicante e o adjudicatário. Nesta linha, desde que esteja manifestamente em causa a viabilidade económico-financeira do adjudicatário ou caso se revele excessivamente oneroso o seu cumprimento, abre-se a possibilidade de este recusar o cumprimento do contrato, invocando a excepção de não cumprimento, ainda que a sua recusa em cumprir cause grave prejuízo à realização do interesse público subjacente à relação jurídica contratual.

Por outro lado, manifesta-se também a ideia de equilíbrio contratual no novo regime da caução. Nos termos deste regime permite-se ao contraente público autorizar a substituição da caução desde que se salvaguardem os pagamentos já efectuados e não resultem diminuídas as garantias do contraente público.  Além disso, determina-se que apenas no contrato deverá ficar estipulado o modo de liberação da caução – sendo restritas as possibilidades de alteração ao contrato nesta matéria – mais se estatuindo que, sempre que a caução sirva de garantia de adiantamento de preços, deverá a mesma ser progressivamente liberada à medida que forem prestados ou entregues os bens ou serviços correspondentes ao pagamento adiantado que sido efectuado pelo contraente público.

Em conclusão, deve dizer-se que, pese embora as inevitáveis falhas e imprecisões que sempre farão parte de qualquer processo evolutivo, e que certamente constituem também parte do CCP, não pode deixar de se salientar o facto de este Código tendo como uma das suas principais finalidades o controlo da divida pública (nomeadamente no que concerne à constante derrapagem de custos nas empreitadas de obras públicas) representar uma verdadeira quebra com o passado no que respeita à regulação desta matéria no ordenamento jurídico Português.

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