Nótula sobre trabalho em dia feriado obrigatório que coincide com o dia de descanso semanal obrigatório, em empresas dispensadas de suspensão do trabalho

Filipe Fraústo da Silva.

2008 Prontuário de Direito do Trabalho, n.º 74/75


1. Feriae ou dies feriati eram, em Roma, as épocas ou dias em que os cidadãos romanos suspendiam os seus negócios e processos judiciais e em que os escravos podiam repousar (ferior)[1]; eram dies nefasti, em que o forum estava encerrado, e estavam, por regra, consagrados a alguma divindade, para celebração pública dos respectivos festivais. Alguns dies feriati não tinham conexão religiosa em sentido estrito e, ao lado das feriae publicae (de observância geral) observavam-se também feriae privatae, apenas a nível individual (por exemplo, no aniversário de cada um) ou, mais comummente, a nível familiar e sobretudo nas grandes famílias Romanas, em homenagem a algum evento familiar importante, presente ou passado. Feriae publicae sem ligação religiosa eram por exemplo os dies natalicii das cidades de Roma ou Constantinopla.

As feriae publicae compreendiam as feriae stativae ou statae, que ocorriam em datas regulares, previamente assinaladas no calendário; as feriae conceptivae ou conceptae, igualmente celebradas todos os anos mas em data que não se encontrava pré‑calendarizada: eram magistrados ou sacerdotes que escolhiam o dia ou dias a observar em cada ano; finalmente, as feriae imperativae, que eram livremente impostas por decisão do cônsul, do pretor ou do próprio imperador – por exemplo, para comemoração de uma vitória militar.

A todas as feria publicae, mesmo às não ligadas a um evento religioso em sentido estrito, era associado um carácter sagrado que impunha a abstinência de labor. O trabalho durante dies feriatus era admissível apenas em casos muito limitados (por exemplo, para remover um prejuízo iminente) e fora deles podia ser punível como infracção. Também um muito reduzido número de diligências judiciais podia ter lugar em tais datas ou períodos.

O advento do Cristianismo no Império Romano substituiu as feriae pelo dia de descanso semanal[2] (Sabbath) e demais festividades cristãs, mas a tradição de hetero‑determinar dies feriatus subsiste hodiernamente: a lei - art. 208º do Cód. Trabalho - define imperativamente um certo número de dias feriados obrigatórios (de notar que passou a constar do elenco o Domingo de Páscoa), a maioria de cariz religioso, outros associados a eventos históricos ou cívicos.

A origem etimológica de férias e feriados é a mesma: o repouso. Mas o sentido actual de umas e outros difere[3]. Observa-se que a instituição de dias feriados (obrigatórios e facultativos) não reside na necessidade de reparar o esforço do trabalho (e, por isso, na necessidade de descanso), como no caso das férias[4], mas antes no tradicional interesse público de permitir (ou impor) à população associar‑se à celebração dos eventos que os justificam[5].

A vivência prática actual de grande número de feriados por parte da população, que efectivamente se desinteressa da celebração dos eventos subjacentes e aproveita antes o feriado para o descanso e o ócio, e a laicização dos interesses públicos, dificilmente compatível com o entendimento de que existe um interesse público (com o sentido tradicional) na comemoração de festividades religiosas, quando são estas que justificam o dia feriado, descaracterizam esta conceptualização dos feriados. A manutenção de um elenco legal de dias feriados repousa, pois, menos na vontade pública da comemoração colectiva de certas efemérides, e mais, ou apenas, no simples respeito do legislador por valores consagrados na sociedade[6], mesmo de natureza religiosa (não cabendo aqui discutir as implicações que, sobre a matéria, podem ter considerações acerca da liberdade religiosa e da igualdade entre religiões[7]).

A não prestação de trabalho em dias feriados não se configura, pois, como direito subjectivo dos trabalhadores, menos ainda como ónus. Ela é consequência da obrigação, que impende sobre as empresas, de suspensão da laboração, pelas razões apontadas. A suspensão do dever de trabalhar sem perda de retribuição (art. 259º, nº 1 do Cód. Trabalho) é uma vantagem reflexa decorrente de um dever do próprio empregador perante o Estado[8].

Mas uma coisa é a justificação da consagração de dias feriados obrigatórios e facultativos pelo respeito por valores consagrados na sociedade, outra a razão de ser e o sentido da sua imperatividade; esta reside hoje num diferente interesse público: o da necessidade de prevenir o excessivo absentismo laboral[9]: eis, pois, o que traduz o art. 210º do Cód. Trabalho, que fere de nulidade as estipulações individuais ou colectivas de outros dias feriados além dos legais.

 

2. O nº 2 do art. 259º do Cód. Trabalho introduziu uma inovação relativamente ao regime anterior, no que respeita a trabalho em dia feriado em empresas dispensadas de suspensão da laboração nesses dias; trata-se, pois, de um regime especial, tendo a norma o seguinte teor:

«O trabalhador que realiza a prestação em empresa legalmente dispensada de suspender o trabalho em dia feriado obrigatório tem direito a um descanso compensatório de igual duração ou ao acréscimo de 100% da retribuição pelo trabalho prestado nesse dia, cabendo a escolha ao empregador.»

 

3. Para compreender o alcance deste regime especial torna-se necessário descrever o regime regra, que é o seguinte:

  1. O trabalho em dia feriado é trabalho suplementar e confere ao trabalhador, em regra, o direito a um descanso compensatório remunerado, correspondente a 25% das horas de trabalho suplementar realizado, direito esse que se vence quando se perfizer um número de horas igual ao período normal de trabalho diário, devendo ser gozado no prazo máximo de 90 dias a contar do vencimento (art. 202º do Cód. Trabalho).
  2. Diferentemente, tratando-se de dia de descanso semanal obrigatório (que pode ou não coincidir com o Domingo), em que está em causa um segmento do direito do trabalhador ao repouso, no caso de prestação de trabalho nesse dia o trabalhador tem direito a um dia completo de descanso compensatório remunerado, a gozar num dos três dias úteis seguintes, independentemente, pois, do número de horas de trabalho suplementar nesse dia de descanso que o justifica.

O regime de descanso compensatório aplicável ao trabalho suplementar em dia de descanso obrigatório (p. ex. Domingo) é, assim, mais favorável do que o regime de descanso compensatório aplicável ao trabalho suplementar em dia feriado. Daí colocar‑se a questão de saber (a) qual dos regimes se aplica quando o trabalhador presta trabalho suplementar em dia feriado que coincide com o dia de descanso semanal obrigatório, e (b) qual dos regimes se aplica quando essa situação ocorra em empresa dispensada da suspensão da laboração em dias feriados.

 

4. A questão prende-se mais com um único aspecto desses regimes, que é o do descanso compensatório, já que, no que toca à retribuição, tanto a prestação de trabalho em dia de descanso semanal, obrigatório ou complementar, como a prestação de trabalho em dia feriado, são, em regra, pagas com acréscimo de 100% da retribuição normal (salvo no caso de empresas dispensadas de suspender a laboração nos feriados, em que o empregador tem o direito de optar por descanso alternativo, como adiante se dirá). E é absolutamente seguro que o trabalho em dia descanso semanal obrigatório que seja simultaneamente feriado não dá lugar ao pagamento em cúmulo dos correspondentes acréscimos, ou seja, tal trabalho suplementar não é pago com acréscimo de 200% da retribuição normal. Tal resulta da circunstância de o fundamento do acréscimo de pagamento ser um só, que não se duplica: a existência de trabalho fora do programa temporal contratual e legalmente devido pelo trabalhador (e não a natureza do facto que delimita esse mesmo programa temporal).

Sendo o dia de descanso semanal obrigatório um direito subjectivo dos trabalhadores, e manifestação do seu direito ao repouso, com assento constitucional – art. 59º, nº 1, al. d) da Constituição – entendemos que, coincidindo esse dia com dia feriado obrigatório, o regime de descanso compensatório aplicável é o regime geral do dia de descanso semanal obrigatório[10]. O trabalhador terá assim direito a um dia completo de descanso compensatório remunerado, a gozar num dos três dias úteis seguintes, independentemente, pois, do número de horas de trabalho suplementar nesse dia de descanso semanal obrigatório coincidente com feriado. Mas em caso algum se podem cumular os dois regimes, isto é, conceder um dia completo acrescido ainda de 25% das horas trabalhadas como descanso compensatório.

 

5. Assim sendo, o esquema final será, parece-nos, o seguinte[11]:

  1. Trabalho suplementar em dia de descanso semanal obrigatório que não coincide com dia feriado: pago com acréscimo de 100% da retribuição normal, acrescido de um dia completo de descanso compensatório remunerado, a gozar num dos três dias úteis seguintes;
  2. Trabalho suplementar em dia de descanso semanal obrigatório que coincide com dia feriado: pago com acréscimo de 100% da retribuição normal, acrescido de um dia completo de descanso compensatório remunerado, a gozar num dos três dias úteis seguintes (o mesmo que em a., ou seja, o regime do descanso semanal obrigatório consome o regime do dia feriado obrigatório);
  3. Trabalho suplementar em dia feriado obrigatório que não coincide com o dia de descanso semanal obrigatório, em empresa legalmente obrigada a suspender a laboração naqueles dias: pago com acréscimo de 100% da retribuição normal acrescido de descanso compensatório correspondente a 25% das horas de trabalho suplementar, a acumular até ao vencimento de um número de horas correspondente ao período normal de trabalho diário e a gozar num dos 90 dias subsequentes ao vencimento.
  4. Trabalho suplementar em dia feriado obrigatório que não coincide com o dia de descanso semanal obrigatório, em empresa dispensada de suspender a laboração nesses dias: pago com acréscimo de 100% da retribuição normal ou, consoante a opção do empregador, descanso compensatório de duração igual às horas de trabalho suplementar. Por analogia, entendemos que se a opção for pelo descanso compensatório, o seu gozo pode ter lugar nos 90 dias seguintes.
  5. Mesmo coincidindo o dia de descanso semanal obrigatório com o dia feriado obrigatório, em caso algum se podem cumular os dois regimes de trabalho suplementar.

[1] Sobre esta matéria cfr. Leonhard Schmitz, ‘Feriae’ in A Dictionary of Greek and Roman Antiguities, disponível em linha no endereço http://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Roman/Texts/secondary/SMIGRA*/Feriae.html

[2] Sobre a origem do descanso semanal, cfr. António Menezes Cordeiro, Direito do Trabalho, Coimbra, 1991, p. 704 e jurisprudência aí citada em nota.

[3] Pode confrontar-se uma breve nota histórica sobre a consagração, em Portugal, do direito a férias periódicas pagas em José Andrade Mesquita, “O Direito a Férias” in Estudos do Instituto de Direito do Trabalho, Vol. III, Coimbra, 2002, p. 65 e segs.

[4] Embora, como aponta Bernardo Lobo Xavier (Curso de Direito do Trabalho, 2ª ed., Lisboa 1993, reimp. 1999, p. 424), os feriados fossem outrora extremamente frequentes, cumprindo então também as funções de descanso que hoje são satisfeitas por outros institutos, como as férias.

[5] Cfr. o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22.06.84, in Acórdãos Doutrinais do Supremo Tribunal Administrativo, nº 275, p. 1350.

[6] Cfr. o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10.10.83 (Pedro Macedo), Colectânea de Jurisprudência, 1983, Tomo IV, p. 198. Mesmo este respeito do legislador por valores consagrados na sociedade encontra-se hoje muitíssimo esbatido – o nº 3 do art. 208º do Cód. Trabalho prevê que se venha a permitir que determinados feriados obrigatórios venham a ser gozados na segunda-feira da semana seguinte. A concretização desta previsão acabará de vez, a nosso ver, com a justificação para a consagração legal de dias feriados. Cfr. também Júlio Vieira Gomes, Direito do Trabalho, Vol. I, Coimbra 2007, p. 706.

[7] Todos os cidadãos, sem distinção de religião, têm direito ao descanso, como resulta do art. 59º da Constituição, observando-se que «…não será jusfundamentalmente irrelevante alguma preferência do trabalhador [por certo dia de descanso semanal], por motivos religiosos (ao sábado)…» - J. J. Gomes Canotilho / Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4ª ed. revista, Coimbra 2007, p. 774. Mas os feriados, como referido no texto, transcendem do campo do direito ao repouso. Num sistema próximo do nosso, veja-se, p. exemplo, esta linha de argumentação sustentando a constitucionalidade da opção legislativa por feriados católicos: «A existência dos feriados deve representar a identidade cultural do povo. Sendo esta notadamente influenciada pela religião católica e pela herança da Civilização Ocidental, que dela também bebeu, natural e perfeitamente jurídico que configurem como elementos caracterizadores da instituição de determinadas datas civis. Não podendo haver feriados para todos os grupos religiosos, pela impossibilidade material. Assim, respeite-se o princípio constitucional da democracia e eleja-se, como critério, a religião majoritariamente professada para a definição daqueles: e é o catolicismo. Os feriados católicos, por um lado, respeitam os direitos da maioria católica, e, por outro, não desrespeitam os direitos da minoria não católica, que não está obrigada a tomar parte nas cerimônias a eles alusivas.» - Rafael Vitola Brodbeck, Apreciação da constitucionalidade dos feriados religiosos católicos em face do princípio do Estado laico na Carta Política do Brasil, 2004, disponível em http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5551.

[8] Cfr. António Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 13ª ed., Coimbra, 2004, p. 406.

[9] Cfr. Rosário Palma Ramalho, Direito do Trabalho – Parte II – Situações Laborais Individuais, Coimbra 2006, p. 480, e o aresto citado na nota 5.

[10] É aliás a solução tradicionalmente defendida: António Menezes Cordeiro, Manual de Direito do Trabalho, 1991, p. 706, e mesmo antes de 1976: cfr. Bernardo da Gama Lobo Xavier, Regime Jurídico do Contrato de Trabalho Anotado, 2ª ed. rev. aum.. Coimbra, 1972, p. 127 e Almeida Policarpo, “Pagamento ou não pagamento ao trabalhador da retribuição correspondente ao dia de descanso semanal”, Estudos Sociais e Corporativos, nº 23, p. 706. Na versão inicial da LCT, o trabalho em dia feriado dava direito a acréscimo retributivo mas não a descanso compensatório.

[11] Luís Miguel Monteiro (em Pedro Romano Martinez, Luís Miguel Monteiro, Joana Vasconcelos, Pedro Madeira de Brito, Guilherme Dray e Luís Gonçalves da Silva, Código do Trabalho Anotado, 5ª edição revista, Coimbra 2007, p. 424) parece admitir diferente solução, ao anotar o art. 208º do Cód. Trabalho referindo que o aditamento do Domingo de Páscoa ao elenco dos feriados obrigatórios se tornou necessário em face da nova disciplina do trabalho prestado em dia feriado em empresas legalmente dispensadas de suspenderem o trabalho naqueles dias, constante do nº 2 do art. 259º. Pensamos, contudo, que o significado desta nota é outro: se o Domingo de Páscoa continuasse omisso do elenco, poder-se-ia questionar a aplicabilidade desta norma do nº 2 do art. 259º do Cód. Trabalho, mas apenas para aqueles trabalhadores cujo dia de descanso semanal obrigatório não coincide com o Domingo.

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