O tratamento fiscal da partilha de bens imóveis

Miguel Durham Agrellos, Marta Ramos Mendes.

2008 Revista CTOC (Revista da Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas), n.º 105


Com o presente artigo pretende-se contribuir para uma melhor clarificação das regras aplicáveis e dos procedimentos que devem ser seguidos aquando de uma partilha que envolva bens imóveis.

De facto, a partilha de bens imóveis poderá ter implicações em sede de Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (“IMT”) e Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (“IRS”), implicações essas a que nos reportaremos separadamente.

Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis

De acordo com o Código do IMT, este imposto incide sobre as transmissões, a título oneroso, do direito de propriedade ou de figuras parcelares desse direito, sobre bens imóveis situados em território nacional.

Em especial, prevê o Código do IMT que é sujeito a imposto “o excesso da quota-parte que ao adquirente pertencer, nos bens imóveis, em acto de divisão ou partilhas”. Refere-se, pois, que fica sujeito a IMT a parte que receber, no âmbito de uma partilha, bens imóveis que excedam a sua quota-parte no conjunto de bens imóveis objecto da partilha. De referir que, para este efeito, resulta ainda da letra da lei que o excesso é calculado em face do valor patrimonial tributário dos bens imóveis ou, se superior, em face do valor que tiver servido de base à partilha (i.e., o valor declarado na escritura pública).

Ora, uma primeira conclusão poderá ser desde já retirada das normas supra referidas: a partilha de bens imóveis gerará imposto na medida em que uma das partes fique com bens em valor superior ao da respectiva quota-parte na totalidade dos imóveis objecto da partilha.

Entendemos, contudo, que o Código do IMT não é totalmente claro quanto às regras de determinação do imposto a pagar nos casos de partilha, sendo omisso relativamente a parte do processo de aplicação das taxas.

Tentaremos, assim, clarificar os procedimentos que devem a este propósito ser seguidos e que nos parecem traduzir a lógica da tributação do IMT.

Por forma a facilitar, partiremos de um exemplo para depois analisarmos os procedimentos a seguir na determinação do imposto a pagar.

Imagine-se uma situação de partilha, na sequência de um divórcio, de três bens imóveis (com indicação de valores patrimoniais tributários, bem como valores declarados na escritura pública).

Imóveis

Destino

VPT

Valor declarado

Prédio 1

Rural

10.000,00 €

10.000,00 €

Prédio 2

Urbano - Habitação PP[1]

50.000,00 €

150.000,00 €

Prédio 3

Outros prédios urbanos

80.000,00 €

80.000,00 €

Total

 

140.000,00 €

240.000,00 €

Considere-se que no exemplo dado, o prédio 1 é atribuído a um dos cônjuges (cônjuge A) e os prédios 2 e 3 ao outro cônjuge (cônjuge B). Considerando a partilha referida (na qual assumimos que foram dadas tornas[2]), importa apurar o valor do excesso dos imóveis recebidos face à respectiva quota-parte.

Assim:

Valor total dos imóveis : EUR 240.000,00 

Valor da quota-parte: EUR 240.000,00 x 50% = EUR 120.000,00  

Valor dos imóveis atribuídos na partilha ao cônjuge A: EUR 10.000,00 

Valor dos imóveis atribuídos na partilha ao cônjuge B: EUR 230.000,00[3]

Excesso apurado (por cônjuge B): EUR 230.000,00 - EUR 120.000,00 = EUR 110.000,00  

Ora, nos termos da partilha efectuada, resulta claro que uma das partes (cônjuge B) apurou um excesso face à respectiva quota-parte. De facto, considerando que o valor da quota-parte ascende a EUR 120.000,00, o excesso apurado é de EUR 110.000,00. Este será, pois, o valor sujeito a tributação em sede de IMT.    

No entanto, considerando que ao cônjuge B foram atribuídos dois imóveis, os quais têm, aliás, destinos diferentes, importa apurar a base tributável de cada um dos imóveis por forma a calcular o imposto devido atendendo à natureza e destino dos bens imóveis.

Não existindo normas expressas sobre o procedimento a seguir, entendemos que - considerando a lógica da tributação do IMT -, haverá que proceder a uma imputação proporcional do excesso apurado por cada um dos  imóveis atribuídos. De facto, a imputação é absolutamente necessária para que se possa proceder ao tratamento fiscal em função da natureza e destino de cada  imóvel. Assim, considerando os destinos referidos, o IMT devido no exemplo dado seria o seguinte:  

Imóveis

Destino

VPT

Valor declarado

Imputação

IMT

Prédio 1

Rural

10.000,00 €

10.000,00 €

 

 

Prédio 2

Urbano - Habitação PP

50.000,00 €

150.000,00 €

71.739,13 €

0,00 €

Prédio 3

Outros prédios urbanos

80.000,00 €

80.000,00 €

38.260,87 €

2.486,96 €

Total

 

140.000,00 €

240.000,00 €

110.000,00 €

2.486,96 €

Em face do exposto, no exemplo dado, seria devido IMT pelo cônjuge B em virtude de ter recebido bens imóveis em excesso à sua quota parte no total dos bens imóveis objecto da partilha. Contudo, considerando que um dos imóveis está destinado exclusivamente a habitação própria e permanente, e que o valor transmitido não excede EUR 87.700,00 (valor até ao qual a lei isenta de IMT), apenas seria devido IMT com referência ao prédio 3, ao qual se aplicaria a taxa de 6,5%, prevista para a aquisição de outros prédios urbanos. O imposto devido pelo cônjuge B seria, pois, de EUR  2.486,96.

De referir que nos casos de partilha de bens imóveis, a liquidação do IMT é promovida pelo serviço de finanças da área onde se encontrarem situados os bens imóveis (sendo que, se estes estiverem situados na área de mais do que um serviço de finanças, será competente o serviço da área a que pertencer o imóvel de maior valor patrimonial tributário).

Notamos ainda que em resultado da transmissão dos imóveis urbanos por via de uma partilha, nos casos em que os mesmos não foram ainda avaliados ao abrigo das novas regras de avaliação constantes do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (em vigor desde Dezembro de 2003), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 287/2003, de 12 de Novembro, deverá ser realizada uma avaliação fiscal, em resultado da qual poderão ser corrigidos os respectivos valores patrimoniais tributários (e consequentemente, o valor do IMT devido).

Descrito o procedimento de liquidação de IMT em resultado de partilha de direito de propriedade sobre bens imóveis, cumpre fazer referência à partilha de direitos reais menores, como é o caso de usufrutos sobre bens imóveis.

Imagine-se, assim, a título de exemplo, a situação de um casal que, na vigência do casamento, doou aos seus filhos o direito de propriedade sobre bens imóveis, reservando para ambos, sucessiva e simultaneamente, os direitos de usufruto, nos termos do artigo 958.º do Código Civil, pretendendo agora, em resultado de divórcio, proceder à respectiva partilha desses usufrutos.   

Importa desde logo sublinhar que, nos termos do Código do IMT, a constituição, a renúncia ou transmissão onerosa do usufruto enquanto direito real menor (ou figura parcelar do direito de propriedade) é tributável, sendo o IMT liquidado pelo valor actual do usufruto, o qual se encontra dependente da idade do usufrutuário (aplicando-se, para este efeito, a tabela prevista no respectivo Código, nos termos da qual o valor do usufruto decresce em função da idade do usufrutuário).

Ora, atendendo ao exemplo dado, entendemos que, à semelhança da situação de partilha de direito de propriedade sobre imóveis, também a partilha de usufrutos deverá gerar imposto na medida em que a uma das partes sejam atribuídos usufrutos que excedam o valor da respectiva quota-parte na totalidade dos usufrutos objecto da partilha.

Efectivamente, quer a alínea c) do número 5 do artigo 2.º, quer o número 4, regra 11º do artigo 12.º, ambos do Código do IMT, referem-se simplesmente a “partilhas de bens imóveis”, sem, contudo, explicitarem o tipo de direito que recai sobre esses bens, pelo que a partilha abrangerá, assim, tanto o direito e propriedade como qualquer outro direito real menor (incluindo direito de usufruto).

Por via desta interpretação, entendemos também que o procedimento de cálculo ou determinação de IMT em caso de partilha de usufrutos seguirá os trâmites acima explicitados quanto à partilha do direito de propriedade, com o único ajustamento de que o valor base a considerar deverá ser o valor actual do usufruto tal como previsto no Código do IMT.

Admitimos, contudo, que a supra referida posição poderá levantar questões de natureza civil, nomeadamente quanto à possibilidade de partilha de usufrutos, bem como à sua eventual consolidação com a propriedade.

Na verdade, e relativamente à primeira questão, refere o artigo 1733.º do Código Civil que os usufrutos são bens incomunicáveis, excluindo tais bens do património comum do casal.

Não obstante, entendemos que tal norma demonstrar-se-ia de difícil compreensão se aplicada a um usufruto adquirido na constância do casamento, sob o regime de comunhão de adquiridos, uma vez que impossibilitaria, para sempre, a partilha desse direito. Neste sentido, julgamos que o referido preceito (em concreto, a alínea c) do número 1 do artigo 1733.º do Código Civil) apenas se poderá aplicar aos casos em que os usufrutos são adquiridos por um dos cônjuges antes do casamento, entendimento reforçado pelo elemento de interpretação sistemático[4].

No que se refere à segunda questão, alertamos para o disposto no artigo 1442.º do Código Civil que consagra o “direito de acrescer” no caso do usufruto ser constituído a favor de várias pessoas conjuntamente. A mencionada norma prevê que o usufruto só se consolidará com a propriedade por morte do último que sobreviver, o que significa que, sendo partilhado o direito de usufruto (relembre-se, adquirido conjuntamente na constância do casamento), não haverá consolidação no direito de propriedade mas antes uma transmissão da quota ideal do direito de usufruto que pertencia a um dos cônjuges para o património do outro cônjuge a quem é atribuído esse usufruto[5].

Face às considerações expostas, entendemos, atendendo ao espírito e ratio da lei, que deverá ser também aplicável à partilha de usufrutos o regime da partilha de imóveis previsto no Código do IMT, nos termos do qual se tributa apenas o excesso da quota-parte que ao cônjuge-adquirente pertencer.

Note-se que, o entendimento contrário, implicaria que o usufruto seria, em princípio, transmitido por via da renúncia, o que implicaria, como referido acima, a liquidação de IMT pelo valor actual do usufruto, divergindo, assim, do tratamento fiscal da partilha do direito de propriedade.

Importa, por fim, notar que a Proposta de Orçamento de Estado para 2009 prevê que em caso de divórcio e consequente partilha de bens imóveis, só se considere haver transmissão sujeita a imposto quando o casamento tenha sido celebrado sob o regime de separação de bens.

Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares

A partilha de bens imóveis pode também ter implicações ao nível do IRS, no que toca ao eventual apuramento de mais-valias.

De facto, nos termos do artigo 10º do Código do IRS, constituem mais-valias os ganhos obtidos que resultem, entre outros, da alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis.

O ganho sujeito a IRS é constituído pela diferença entre o valor de realização e o valor de aquisição, corrigido pelos coeficientes de desvalorização monetária (aprovados anualmente por Portaria do Ministro das Finanças) sempre que tenham decorrido mais de 24 meses entre a data da aquisição e a data da alienação.

De referir que o valor dos rendimentos qualificados como mais-valias - e sujeito às taxas gerais do IRS - é o correspondente ao saldo apurado entre as mais-valias e as menos-valias realizadas no mesmo ano, sendo que o referido saldo, positivo ou negativo, respeitante à transmissão por residentes de direitos reais sobre bens imóveis, é considerado apenas em 50% do seu valor.

Importa, assim, verificar o respectivo valor de aquisição e de realização para efeitos do cálculo do valor da mais-valia sujeita a tributação.

Ora, nos termos da lei, o valor de aquisição a título oneroso de bens imóveis deverá ser aquele que foi considerado para efeitos de liquidação de IMT. No caso de aquisição a título gratuito, deverá ser aquele que foi considerado para efeitos de Imposto do Selo.

Quanto ao valor de realização, deverá o mesmo corresponder, no caso da partilha, ao valor da respectiva contraprestação explicitado no respectiva escritura de partilha. Contudo, importa a este propósito, referir n.º 2 do artigo 44º do Código do IRS o qual dispõe que tratando-se de direitos reais sobre bens imóveis, prevalecerão, quando superiores, os valores por que os bens houverem sido considerados para efeitos de liquidação de IMT ou, não havendo lugar a essa liquidação, os que devessem ser, caso fosse devida.

Ora, parece resultar do n.º 2 do artigo 44º que caso os valores patrimoniais tributários dos imóveis objecto da partilha sejam superiores ao valor considerado para efeitos da partilha, é o valor patrimonial tributário que deve ser considerado para efeitos do apuramento de mais-valias.

Cumpre referir que, ao contrário do que é previsto em sede de IRC e também em sede de IRS, no caso de  mais-valias prediais qualificáveis como rendimentos profissionais e empresariais, não se prevê expressamente no Código do IRS para a categoria G (incrementos patrimoniais) possibilidade de prova de que o valor de realização foi inferior ao valor patrimonial tributário.

Não obstante, entendemos que o n.º 2  do artigo 44º do Código do IRS só pode ser interpretado como consubstanciando uma presunção, presunção essa passível de ser afastada mediante prova em contrário. De facto, tratando-se de uma norma de incidência, o n.º 2 do artigo 44º deverá admitir prova em contrário, conforme obriga o artigo 73º da Lei Geral Tributária.

De facto, em nosso entendimento, sendo possível determinar valores reais com segurança, não se vê como poderia o legislador pretender a existência de uma única regra: a incidência de imposto sobre valores normais ou presumidos. Efectivamente, ainda que a Constituição da República Portuguesa consagre a aplicação do princípio do rendimento real para as empresas, não nos parece possível a utilização de valores ou rendimentos normais quando os rendimentos reais são de fácil acesso (por exemplo através da verificação de contratos e de extractos bancários).

Neste sentido, entendemos que o n.º 2 do artigo 44º do Código do IRS estipula uma presunção a qual admite prova em contrário. Um outro entendimento levaria, em nossa opinião, e atendendo à possibilidade de prova em contrário noutras situações conforme supra referido, à violação do próprio princípio da igualdade.


[1] Habitação Própria e Permanente

[2] Note-se que é a atribuição de tornas a um dos cônjuges que confere carácter oneroso à operação de partilha, implicando, por essa via, a incidência de IMT.

[3] Este valor resulta da soma de EUR 150.000,00 (valor declarado do Prédio 2) e EUR 80.000,00 (valor declarado e VPT do Prédio 3). 

[4] O artigo 1733.º do Código Civil encontra-se previsto na secção relativa à comunhão geral de bens, segundo o qual o património comum do casal é constituído, não apenas pelos bens futuros dos cônjuges, mas igualmente pelos respectivos bens presentes (anteriores à celebração do casamento). Só assim é compreensível a previsão de incomunicabilidade do usufruto, i.e. se adquirido anteriormente à celebração do casamento. Discordamos, assim, do entendimento segundo o qual a partilha de usufrutos adquiridos durante o matrimónio, por ambos os cônjuges, não é possível.

[5] Neste sentido, parece seguir Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Volume III, Coimbra Editora Limitada.

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