O novo regime do arrendamento rural

Rita Xavier de Brito.

2010 Vida Imobiliária, n.º 147


1. INTRODUÇÃO

No dia 11 de Janeiro de 2010 entrou em vigor o Decreto-Lei n.º 294/2009, de 13 de Outubro, que aprovou o novo regime do arrendamento rural (“NRAR”).

Tendo revogado o Decreto-Lei n.º 385/88, de 25 de Outubro (alterado pelo Decreto-Lei n.º 524/99, de 10 de Dezembro), e o Decreto-Lei n.º 394/88, de 8 de Novembro, este novo regime veio congregar num único diploma a regulamentação que se encontrava dispersa em vários diplomas avulsos.

O NRAR, integrado nas principais linhas de acção traçadas pelo Governo nas Grandes Opções do Plano para 2009, visa essencialmente dinamizar o mercado do arrendamento rural e promover a mobilização das terra agrícolas para a actividade produtiva, combatendo, deste modo, o abandono das mesmas.

O novo regime aposta na liberdade contratual, privilegiando o acordo entre senhorio e arrendatário. Também neste sentido, foi eliminada a intervenção do Estado prevista no antigo regime do arrendamento rural([1]), v.g. a respeito da realização de benfeitorias.

2. ANÁLISE

O arrendamento rural é a locação de parte ou da totalidade de um prédio rústico para fins agrícolas, florestais ou de outras actividades de produção de bens ou serviços relacionadas com a agricultura, a pecuária ou a floresta, em especial os serviços prestados por empreendimentos de turismo rural e actividades de animação turística aí desenvolvidas, actividades de conservação dos recursos naturais e da paisagem, não orientada para a produção de bens mercantis, bem como as actividades apícola e cinegética desenvolvidas em prédios rústicos objecto de arrendamento.

Acresce que o NRAR passou a prever expressamente a possibilidade de, por vontade das partes expressa no contrato, o arrendamento rural abranger a transmissão de direitos de produção e direitos de apoios financeiros no âmbito da Política Agrícola Comum relacionados com o prédio arrendado.

2.1.       Tipos de arrendamento

O NRAR passou a tipificar e regular três tipos de arrendamento rural: (i) o arrendamento agrícola, (ii) o arrendamento florestal e (iii) o arrendamento de campanha, os quais ficam agora sujeitos a um regime comum, salvaguardadas determinadas regras específicas adaptadas às especificidades de cada uma destas actividades.

2.2.       Nulidade de cláusulas

À semelhança do que já se encontrava previsto no antigo regime, o NRAR continua a ter vestígios do princípio da protecção do arrendatário enquanto parte mais fraca do contrato: é o caso da cominação de nulidade de determinadas cláusulas insertas nos contratos de arrendamento rural, tais como aquelas em que o arrendatário (i) renuncie antecipadamente ao direito à renovação ou à denúncia do contrato; (ii) se obrigue a pagar o prémio de seguro contra incêndios de edifícios ou instalações estranhas ao objecto do contrato, impostos ou outras contribuições sobre os prédios objecto do contrato devidos pelo senhorio; ou (iii) se obrigue a serviços que não revertam em benefício directo do prédio ou se sujeite a encargos extraordinários.

2.3.       Duração

Também o regime dos prazos de arrendamento não se afasta muito do que se encontrava estabelecido nos regimes anteriores.

Assim, atentas as especificidades de cada tipo de arrendamento rural, o NRAR prevê o seguinte regime imperativo (i.e. que não se encontra na disposição das partes):

(i) os arrendamentos agrícolas não podem ser celebrados por um prazo inferior a sete anos;

(ii) os arrendamentos florestais não podem ser celebrados por um prazo inferior a sete nem superior a setenta anos; e

(iii) os arrendamentos de campanha não podem ser celebrados por um prazo superior a seis anos.

Apesar do referido, o NRAR passou a prever que a renovação dos contratos fica na disponibilidade das partes (i.e. não se encontra sujeita a quaisquer regras imperativas), facto que constitui um pequeno reflexo da liberdade contratual apregoada pelo legislador em sede programática.

2.4. Formas de cessação do contrato

No que respeita ao regime – imperativo, adiante-se – estabelecido para as diversas formas de cessação do contrato (v.g. caducidade, resolução, oposição à renovação e denúncia), aplaudimos a harmonização da terminologia utilizada pelo NRAR em linha com o regime do arrendamento urbano, aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Maio (“NRAU”).

2.4.1. Resolução

À semelhança do disposto no NRAU quanto à resolução do contrato, o NRAR consagra a possibilidade de qualquer das partes resolver o contrato de arrendamento rural com base no (i) incumprimento contratual da parte contrária que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível a manutenção do arrendamento, ou com base na (ii) alteração significativa da natureza e ou da capacidade produtiva do prédio objecto de arrendamento.

Não obstante, ao contrário do que sucede em sede de NRAU, o NRAR indica taxativamente as situações de incumprimento pelo arrendatário que permitem ao senhorio resolver o contrato, não sendo, por conseguinte, admissível a resolução do contrato pelo senhorio com fundamento noutras situações de incumprimento diferentes daquelas previstas na lei. São elas, por exemplo, (i) a falta de pagamento atempado da renda devida, desde que o arrendatário não faça cessar a mora no prazo de 60 dias a contar do seu início; (ii) a ausência de uso apropriado e regular do prédio ou o seu uso para fim diferente daquele contratualmente previsto; (iii) a falta de zelo pela boa conservação dos bens ou a causa de prejuízos graves nos que, não sendo objecto do contrato, existam no prédio arrendado; (iv) ou o subarrendamento ou cessão por comodato do prédio arrendado ou cessão da sua posição contratual sem observância dos respectivos termos legais.

Por outro lado, de acordo com o NRAR, o arrendatário passa ainda a poderresolver o contrato com fundamento em causas alheias à actuação faltosa do senhorio, tais como (i) a redução ou alteração da capacidade produtiva do prédio arrendado por causa imprevisíveis e anormais não susceptíveis de serem cobertas por seguro, excepto nos casos de povoamentos florestais e plantações de culturas permanente; (ii) a ocorrência de circunstâncias imprevistas e anormais que causem a perda de mais de um terço das plantações e que ponham seriamente em risco o retorno económico dessa exploração, quando se trate de arrendamentos agrícolas ou florestais; (iii) ou a expropriação, ainda que parcial, do prédio arrendado.

A resolução deve ser comunicada no prazo de seis meses ou de um ano a contar da data do conhecimento do facto que lhe deu causa consoante, respectivamente, se trate de contratos com duração de até dois anos ou não.

2.4.2. Oposição à renovação

O senhorio e o arrendatário podem opor-se à renovação do contrato de arrendamento mediante pré-aviso de um ano relativamente à data do termo do contrato ou da respectiva renovação, consoante aplicável.

2.4.3.   Denúncia

O regime da denúncia do contrato de arrendamento rural previsto no NRAR, não sendo isento de dúvidas, parece-nos apenas admitir a denúncia por qualquer das partes nos casos indicados no referido diploma, não sendo possível a denúncia livre e injustificada por qualquer das partes a todo o tempo.

Neste sentido, dita a lei que o arrendatário pode denunciar o contrato em casos de abandono da actividade agrícola ou florestal, ou quando, por motivos alheios à sua vontade, o prédio arrendado não permita o desenvolvimento das actividades agrícolas ou florestais de forma economicamente equilibrada e sustentável.

No que respeita à denúncia pelo senhorio, o NRAR estendeu a todos os tipos de arrendamento rural as regras anteriormente já previstas no regime do arrendamento para fins de exploração agrícola ou de pecuária para a denúncia por parte do senhorio emigrante; assim, este pode denunciar o contrato de arrendamento mediante um pré-aviso de um ano, desde que reúna, cumulativamente, as seguintes condições:

(i)  tenha sido o próprio a arrendar o prédio ou o tenha adquirido por sucessão;

(ii) necessite de regressar ou tenha regressado a Portugal há menos de um ano; e

(iii) pretenda explorar directamente o prédio objecto de arrendamento. 

Nestas situações, e salvo caso de força maior, o senhorio emigrante deverá manter, directamente ou através de um membro do seu agregado familiar, a exploração directa do prédio, por um período mínimo de cinco anos, sob pena de ter de pagar ao arrendatário uma indemnização no valor correspondente ao quíntuplo das rendas relativas ao período em que o arrendatário esteve ausente, tendo este ainda o direito de reocupar o prédio ao abrigo de um novo contrato de arrendamento.

2.4.4. Regime excepcional quanto à efectivação da oposição à renovação ou da denúncia por parte do senhorio

O NRAR prevê que, o arrendatário que reúna, cumulativamente, as seguintes condições:

(i)  tenha mais de 55 anos de idade e resida ou utilize o prédio objecto de arrendamento há mais de 30 anos; e

(ii)  o rendimento obtido do prédio constitua a fonte principal ou exclusiva de rendimento do seu agregado familiar;

 

poderá opor-se à efectivação da oposição à renovação ou da denúncia  por parte do senhorio.

2.5.       Renda

Diferentemente do que se encontrava previsto no regime anterior, o NRAR impõe que a renda consista exclusivamente em dinheiro.

Relativamente à actualização da renda, as partes podem livremente convencionar qualquer critério.

Tal como já se encontrava previsto no regime anterior, também o regime actual prevê a possibilidade de ser convencionada a alteração do valor da renda em caso de ocorrência de circunstâncias imprevisíveis e anormais que provoquem alterações com impacto significativo na rentabilidade normal do prédio arrendado.

2.6.       Parcerias agrícolas

O artigo 34.º do Decreto-Lei n.º 524/99, de 10 de Dezembro, que estabelecia o regime do arrendamento rural para fins de exploração agrícola ou pecuária ora revogado, tinha já ditado o fim da parceria agrícola, na medida em que previa que esta (apenas) era mantida até que o Governo estabelecesse as normas transitórias adequadas à sua efectiva extinção. 

Esse momento chegou com o NRAR, no qual o Governo determinou a extinção dos contratos de parceria agrícola e de contratos mistos de arrendamento e parceria, obrigando à conversão deste tipo de contratos, existentes à data da entrada em vigor do diploma em análise, em contratos de arrendamento rural.

A referida conversão deverá ocorrer (i) nos 30 dias que antecedem a renovação dos contratos em causa; ou (ii) caso não tenha sido convencionado um prazo de duração para os mesmos, na data em que a respectiva vigência cesse por qualquer outra causa, por acordo entre os parceiros, por iniciativa ou vontade expressa do parceiro cultivador ou por morte do mesmo.

2.7.       Aspectos processuais

O NRAR inclui também as regras adjectivas aplicáveis ao arrendamento rural.

Neste contexto, cumpre realçar que o NRAR acompanhou o NRAU ao prever expressamente que, quando o arrendatário não desocupe o prédio quando devido, o contrato de arrendamento, acompanhado dos comprovativos das comunicações previstas na lei (v.g. comunicação ao arrendatário do valor das rendas em dívida), constituem título executivo para interposição de acção para entrega de coisa certa (o imóvel), bem como para, em sede de processo executivo, exigir do arrendatário o pagamento das rendas devidas.

3.  CONCLUSÃO

As pretensões do XVIII Governo Constitucional (na senda do que já vinham sendo os objectivos a que se propunha o Governo anterior) para a reforma do regime do arrendamento rural no âmbito do desenvolvimento agrícola e rural e para a promoção da coesão social em Portugal parecem-nos genuinamente acertadas e efectivamente necessárias.

Neste contexto, e no que respeita, em particular, ao diploma em análise, refira-se que a condensação dos vários regimes avulsos anteriormente vigentes num único diploma, bem como a harmonização de determinada terminologia com o regime paralelo para o arrendamento urbano merecem aplauso, sobretudo por facilitar a interpretação da lei e por, segundo cremos, servir de bom exemplo do ponto de vista de técnica legislativa, o que lamentavelmente se torna cada vez mais raro nos dias de hoje.

Não obstante o supra exposto, não podemos deixar de fazer um juízo crítico ao plano substantivo do NRAR pois, da análise comparativa deste diploma com os regimes anteriormente em vigor resulta, em nossa opinião e salvo o devido respeito, que as alterações introduzidas pelo NRAR são insuficientes para alcançar os objectivos a que se propõe, patentes no respectivo preâmbulo.

Tememos que o arrendamento rural em Portugal careça de uma reforma mais profunda do que aquela alcançada pelo NRAR, quiçá arriscando-se mais na liberdade contratual (menos condicionada) das partes e criando-se mais incentivos ao investimento nas terras, com especial enfoque na exploração de forma sustentável e compatível com a protecção do ambiente.

Em face do exposto, aguardaremos agora, expectantes, pelos frutos da aplicação prática do NRAR, na esperança de que este diploma represente já um passo no sentido de tornar a agricultura portuguesa mais competitiva num mercado europeizado e no quadro da exigente Política Agrícola Comum.
 


 

([1])  Cf. artigo 14.º do Decreto-Lei n.º 385/88, de 25 de Outubro, alterado pelo Decreto-Lei n.º 524/99, de 10 de Dezembro.


 

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