Loteamento Vs Propriedade Horizontal (I)
2005 Vida Imobiliária, n.º 90
I. INTRODUÇÃO
O solo, enquanto suporte físico no qual assentam a construção urbana e as actividades físicas humanas, levanta vários problemas decorrentes da compatibilização entre as pretensões urbanísticas privadas e as regras públicas. Uma das manifestações desses problemas corresponde à questão ora em apreço de saber o que pode e deve entender-se como operação imobiliária sujeita ao regime do loteamento urbano e/ou ao regime da propriedade horizontal, bem como quais as vantagens e desvantagens decorrentes do enquadramento num ou noutro regime legal.
Este dilema resulta da introdução em 1994 do artigo 1438.º-A no Código Civil (“Propriedade Horizontal de Conjuntos de Edifícios”) através do Decreto-Lei n.º 267/94, de 25 de Outubro.
Recuando um pouco no tempo, importa recordar que a procura de solos e o surto da construção se tornou maior no século XX, após a 2.ª Guerra Mundial e com o desenvolvimento industrial. O êxodo rural e a migração para as cidades, a partir da década de 60, aliadas à escassez de solos e de habitações, ao encarecimento do custo de vida - nomeadamente das rendas - e à evolução técnica no domínio da engenharia e dos materiais de construção, criaram as condições necessárias para, por um lado, se iniciar a construção em massa e em altura e se proporcionar a oferta de habitações a preços acessíveis e, por outro lado, se recorrer à divisão e ao uso do solo com um claro desrespeito pela lei e/ou pelo interesse público.
A dificuldade de controlo das actividades construtivas em curso durante o período descrito originou (i) situações graves - algumas ainda hoje visíveis - associadas à falta de obras de urbanização, nomeadamente de espaços, infra-estruturas e equipamentos destinados às actividades humanas nos núcleos habitacionais; (ii) ao nível social, reflectiu-se na privação de qualidade de vida dos cidadãos; e (iii) ao nível económico, no aumento das encargos das câmaras municipais e do Estado, os quais foram obrigados a realizar e custear as infra-estruturas urbanísticas mínimas e indispensáveis.
II. LOTEAMENTOS URBANOS
Só a partir de 1965, com o Decreto-Lei n.º 46.673, de 29 de Novembro, entretanto alterado pelo Decreto-lei n.º 289/73, de 6 de Junho, a divisão de lotes destinados à construção teve regulamentação legal autónoma, tendo sido este o primeiro diploma a estabelecer a sujeição das operações de loteamento urbano e obras de urbanização a um regime de licenciamento próprio.
Desde 1965 até ao actual Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJUE), constante do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Setembro, com as alterações que lhe foram introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 177/2001, de 4 de Junho, vários foram os diplomas que vieram regulamentar a operação de loteamento, tendo todas como matriz comum a definição de um regime que permitisse às câmaras municipais uma função de controlo do uso dos solos e a imposição de formas correctas e ponderadas de ocupação dos mesmos, nomeadamente evitando que se efectuassem operações de loteamento sem que previamente estivessem garantidas as indispensáveis infra-estruturas urbanísticas.
Para aferir as características do “loteamento urbano” é necessário passar sumariamente em revista o conceito tal como este se encontra previsto na alínea (i) do artigo 2.º do RJUE. Esta disposição prevê três tipos distintos de operações urbanísticas qualificadas como de “loteamento urbano”:
(i) o loteamento em sentido estrito - significando divisão de prédios em lotes destinados à edificação urbana;
(ii) o emparcelamento - significando as anexações de prédios autónomos da qual resulta a constituição de um ou vários lotes destinados à edificação urbana; e
(iii) o reparcelamento - correspondente a um instrumento de execução dos planos municipais de ordenamento do território, previsto no artigo 131.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 380/99, de 22 de Setembro, que se caracteriza pela junção de duas operações urbanísticas numa só, a saber: o agrupamento de terrenos localizados dentro de perímetros urbanos delimitados em plano municipal de ordenamento de território, seguido da sua posterior divisão em lotes ou parcelas destinadas à construção urbana e adjudicação ao primitivos proprietários.
Estas operações urbanísticas encontram-se sujeitas ao mesmo regime jurídico de controlo prévio municipal através de licenciamento ou de autorização administrativa.
Importa ainda sublinhar que qualquer uma das operações urbanísticas previstas e qualificadas na alínea (i) do artigo 2.º do RJUE como de “loteamento urbano” encontra-se ainda sujeita ao cumprimento de um conjunto de obrigações e previsões especiais previstas nos artigos 41º e seguintes do RJUE, designadamente:
(i) o respectivo projecto deve prever áreas destinadas a implantação de espaços verdes e de utilização colectiva, infra-estruturas viárias e equipamentos, de acordo com os parâmetros que estiverem definidos no plano municipal de ordenamento de território aplicável;
(ii) ás áreas de natureza privada projectadas contendo espaços verdes e de utilização colectiva, infra-estruturas viárias e equipamentos são consideradas partes comuns dos lotes resultantes da operação de loteamento e dos edifícios que neles venham a ser construídos, regendo-se pelo regime legalmente previsto para imóveis constituídos sob o regime da propriedade horizontal;
(iii) devem ser cedidas gratuitamente ao domínio público municipal áreas para implantação de espaços verdes públicos e de equipamentos de utilização colectiva e infra-estruturas ou, caso o prédio a lotear já esteja servido de infra-estruturas ou não se justifique, por motivos de interesse público, a localização de equipamentos municipais ou espaços verdes públicos no mesmo, deverá em alternativa haver lugar a uma compensação financeira ao município, em numerário ou espécie, em termos e condições a definir por regulamento camarário;
(iv) devem ser cumpridas as condições determinadas pela câmara municipal competente para a execução das “obras de urbanização” (obras de criação ou remodelação de infra-estruturas e espaços de utilização colectiva supra descritas), nomeadamente prestando caução para garantir a boa e regular execução das mesmas;
(v) nos casos legalmente previstos, maxime quando esteja em causa a execução de “obras de urbanização” por mais de um responsável, poderá ser celebrado, voluntária ou imperativamente, um contrato de urbanização entre o promotor e a câmara municipal competente, no qual se regulem os termos e condições de execução das mesmas.
III. PROPRIEDADE HORIZONTAL (PROPRIEDADE VERTICAL)
Diferentemente do que sucede com o “loteamento urbano” (instituto de direito público), a figura da propriedade horizontal constitui um instituto de direito privado, encontrando-se o respectivo regime jurídico previsto nos artigos 1414.º e seguintes do Código Civil (“CC”).
A propriedade horizontal “clássica” caracteriza-se pelo seccionamento horizontal de um edifício em pisos que constituem propriedades distintas (fracções autónomas).
Para efeitos da presente análise, iremos deter-nos unicamente na aplicação do regime da propriedade horizontal a conjuntos de edifícios (vulgarmente designada por “propriedade vertical”) prevista no artigo 1438.º-A, do CC.
Até 1994 não podia falar-se em propriedade horizontal em relação a conjuntos imobiliários, constituídos por diversos edifícios afectos a um único fim e com elementos ou serviços comuns a todos eles, de que se apontava como exemplo as “aldeias turísticas”.
Com a entrada em vigor do Decreto-lei n.º 267/94, de 25 de Outubro, foi introduzido o artigo 1438.º-A do CC, o qual passou a prever expressamente este tipo de projectos/conjuntos imobiliários. Desmembrando esta disposição, encontramos dois elementos a considerar aquando da definição desta figura jurídica, a saber:
(i) “existência de conjuntos de edifícios contíguos” - abrangendo construções em banda (i.e. encostadas) e, numa interpretação mais lata do conceito legal, construções com relação de proximidade entre si que, não obstante não se encontrarem materialmente ligadas, façam parte de um todo, de uma unidade territorial, estando funcionalmente ligadas;
(ii) “funcionalmente ligados entre si pela existência de partes comuns afectadas ao uso de todas ou algumas unidades ou fracções que os compõem” - significando a existência de partes comuns (para além das tradicionalmente consideradas e previstas no regime geral do CC poderão igualmente incluir-se neste conceito instalações gerais, jardins, garagens e outros locais de lazer) e que entre estas e cada edifício privativo haja comunhão funcional.
NOTA: a continuação da análise do regime jurídico da propriedade horizontal de conjuntos de edifícios, bem como as conclusões acerca do comparativo entre este instituto e o instituto do loteamento urbano serão objecto de artigo a publicar no próximo número da Vida Imobiliária.