Novo Regime do Arrendamento Urbano. Parte I

João Torroaes Valente.

2006 Vida Imobiliária, n.º 98


I. INTRODUÇÃO

Todos os estudos, comparatísticos e sócio-económicos, realizados nos últimos anos apontavam para a necessidade de uma reforma profunda do regime do arrendamento urbano vigente (Decreto-lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, e respectivas alterações - “RAU”), nisso sendo acompanhados pela opinião do cidadão mais comum.

Passadas décadas de sucessivas alterações e pretensas reformas, é indubitável que o mercado de arrendamento continua paralisado, ao mesmo tempo que os centros urbanos se degradam, fruto do baixo nível de rendimento associado aos arrendamentos antigos, tendencialmente perpétuos.

Em Portugal existem hoje cerca de 700.000 contratos de arrendamento urbano, dos quais cerca de 400.000 são anteriores a 1990, sujeitos ao regime vinculístico.

O “vinculismo” exprime um conjunto de regras que, historicamente, se têm vindo a cumular paulatinamente ao sabor das diversas crises da habitação do século XX, com o fito de proteger o arrendatário, podendo sintetizar-se nas seguintes ideias força: (i) impedem, via de regra, a cessação do contrato por livre iniciativa do senhorio; (ii) limitam radicalmente as situações nas quais, por culpa do arrendatário, poderiam ocorrer despejos; (iii) congelam as actualizações de renda ou submetem-nas a processos de actualização complicados e de montantes modestos; (iv) complicam os processos de despejo alongando desmesuradamente, por razões sociais e de tutela da habitação, a sua execução, o que torna os respectivos custos marginais dissuasivos; (vi) facultam transferências da posição do arrendatário à margem da vontade do senhorio; e (vii) em razão do direito de preferência atribuído ao arrendatário dificultam a circulação da propriedade.

Este conjunto de regras visou impedir que problemas de conjuntura económico-social (inflação, baixos salários, etc.) fossem repercutidos nas classes médias urbanas, sendo o impacto inerente suportado pelos proprietários (senhorios).

No entanto, a conjuntura económico-social que justificou estas medidas alterou-se significativamente na última década com o aumento do nível de vida, a estagnação demográfica, os progressos da construção civil, os apoios do Estado e as facilidades de acesso ao crédito, tendo estes factores provocando um superavit de oferta em termos imobiliários.

Por outro lado, proliferam os prédios devolutos ou desaproveitados que, em razão do desconforto causado pelo vinculismo aos proprietários, não são encaminhados para o mercado do arrendamento.

Desde a reforma de 1990 - que deu origem ao regime do arrendamento urbano ainda em vigor (Decreto-lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro) - até 2004 foram publicadas diversas vagas legislativas consubstanciando tímidos avanços para o futuro, maxime criando os arrendamentos a termo efectivo (i.e. de duração limitada/não vinculísticos), mantendo praticamente intocados os arrendamentos vinculísticos.

Entretanto, o XVI Governo Constitucional elaborou um projecto de lei,  aprovado no dia 18 de Novembro de 2004 pela Assembleia da República o então designado “Regime do Novo Arrendamento Urbano” (“RNAU”), o qual previa arrendamentos não vinculísticos, mantendo os arrendamentos de pretérito sujeitos às leis antigas. Todavia, estabeleceu-se à data um regime de transição que, em determinados termos, assegurava a progressiva passagem dos arrendamentos vinculísticos de pretérito para o universo dos novos arrendamentos.

Esta reforma foi objecto de severas criticas em razão da instabilidade que, subitamente, poderia lançar em situações de arrendamentos muito antigas, tendo - com a crise política - soçobrado com o Governo que esteve na sua génese.

É neste contexto que, no passado dia 21 de Dezembro de 2005, o XVII Governo Constitucional (Governo PS) fez aprovar pela Assembleia da República o agora designado “Novo Regime do Arrendamento Urbano” (“NRAU”), encontrando-se o mesmo presentemente a aguardar promulgação pelo Presidente da República e posterior publicação em Diário da República.

II.  ANÁLISE

Tal como se encontrava previsto no anterior projecto (RNAU), com a entrada em vigor do NRAU as regras relativas ao arrendamento “regressarão” ao Código Civil (“CC”), passando a estar reguladas em conjunto com as da locação.

Diferentemente do que sucede com o regime ainda vigente (RAU), em que se prevêem quatro tipos de arrendamento urbano (para habitação, para comércio ou indústria, para o exercício de profissões liberais e para outros fins não habitacionais), o NRAU vem prever a bipartição dos mesmos em “arrendamentos para fins habitacionais” e “arrendamentos para fins não habitacionais”.

Para além destes dois tipos contratuais, o NRAU prevê a obrigação de disciplinar (no prazo máximo de 180 dias contados desde a sua publicação em Diário da República) os habitualmente designados “contratos de utilização de espaços em centros comerciais”, os quais passarão - por esta via - a ter um regime tipo legalmente previsto que conviverá com o regime do arrendamento urbano, facto que poderá colocar termo à contenda doutrinal e jurisprudencial até hoje existente sobre a qualificação jurídica destes contratos.

Por outro lado, o NRAU substitui os tipos contratuais actualmente previstos no RAU (arrendamentos sujeitos ao regime geral e sujeitos ao regime de duração limitada) por dois novos tipos contratuais: os “arrendamentos de prazo certo” e os “arrendamentos de duração indeterminada”, sendo aplicável supletivamente, caso nada se estipule no contrato, o segundo regime.

2.1.     Arrendamentos habitacionais

De prazo certo

Os arrendamentos habitacionais de prazo certo deverão ter um prazo não inferior a 5 anos e não superior a 30 anos, sendo o mesmo renovável por prazos mínimos sucessivos de 3 anos, salvo se outros não forem estipulados pelas partes. No entanto, estes limites não se aplicam aos contratos para habitação não permanente ou para fins especiais transitórios, maxime por motivos profissionais, de educação e formação ou turísticos.

De acordo com o NRAU, o senhorio poderá opor-se à renovação mediante pré-aviso enviado ao arrendatário com uma antecedência mínima de 1 ano relativamente ao termo do contrato. Diferentemente, o arrendatário poderá fazê-lo mediante pré-aviso efectuado com a antecedência mínima de 120 dias relativamente ao termo do prazo.

Simultaneamente, o NRAU prevê a possibilidade de o arrendatário, após seis meses de duração efectiva do contrato, o denunciar a todo o tempo mediante pré-aviso efectuado com a antecedência mínima de 120 dias relativamente ao termo pretendido do contrato, produzindo essa denúncia efeitos no final do mês de calendário respectivo em curso.

Caso o arrendatário não respeite os prazos de pré-aviso referidos para “oposição à renovação” e para a “denúncia” do contrato, fica obrigado ao pagamento das rendas correspondentes ao prazo de pré-aviso em falta.

De duração indeterminada

No caso de arrendamentos para habitação de duração indeterminada, de acordo com o NRAU, o arrendatário pode denunciar o contrato mediante pré-aviso efectuado com pré-aviso mínimo de 120 dias relativamente ao termo pretendido do contrato, produzindo essa denúncia efeitos no final do mês de calendário respectivo em curso.

Diferentemente, o senhorio apenas poderá denunciar o contrato em 3 situações:

(a) quando haja necessidade de habitação pelo próprio ou pelos seus descendentes em primeiro grau, verificados que estejam determinados requisitos previstos no NRAU (devendo, neste caso, dar ao local arrendado a utilização invocada no prazo de 6 meses e por um período mínimo de 3 anos); ou

(b) para demolição ou realização de obras de remodelação ou restauro profundos - este tipo de denúncia pelo senhorio deverá ser objecto de legislação complementar especial a publicar entretanto; ou

(c) mediante comunicação efectuada ao arrendatário com a antecedência mínima de 5 anos relativamente à data em que se pretenda a cessação.

Ao contrário do que sucede com a denúncia efectuada nos termos do disposto na alínea (c), a qual opera extra-judicialmente, a denúncia pelo senhorio nos termos referidos nas alíneas (a) e (b) supra deverá ser feita judicialmente com antecedência mínima de 6 meses relativamente à data pretendida para a desocupação do imóvel, nunca podendo resultar numa duração total do contrato inferior a 5 anos.

Sem prejuízo do que venha a ser definido por legislação complementar, de acordo com o disposto no NRAU, no caso referido na alínea (b) supra, o senhorio deverá, mediante acordo com o proprietário, alternativamente: (i) pagar todas as despesas e danos suportados pelo arrendatário (não podendo o valor da indemnização ser inferior a 2 anos de renda); (ii) garantir o realojamento do arrendatário no mesmo concelho em condições análogas às existentes; ou (iii) assegurar o realojamento temporário do arrendatário no mesmo concelho com vista a permitir a reocupação do imóvel em condições análogas às existentes. De acordo com o NRAU, caso não venha a ser obtido este acordo entre senhorio e arrendatário, o senhorio encontra-se obrigado a pagar todas as despesas e danos suportados pelo arrendatário.

2.2.     Arrendamentos para fins não habitacionais

Em matéria de arrendamentos não habitacionais, as partes poderão livremente determinar o conteúdo do contrato, designadamente em matéria de prazo de vigência, regime de denúncia e de oposição à renovação.

Na falta de estipulação das partes, são aplicáveis subsidiariamente as disposições do NRAU previstas relativamente aos arrendamentos habitacionais, considerando-se o contrato com prazo certo pelo prazo de 10 anos, não podendo o arrendatário denunciá-lo com antecedência inferior a 1 ano.

Locação de estabelecimento

Ainda em sede de arrendamento não habitacional, a actualmente denominada cessão de exploração de estabelecimento comercial, passa a ser designada como “locação de estabelecimento”, correspondendo à transferência temporária do gozo de um prédio ou de parte dele em conjunto com a exploração de um estabelecimento comercial nele instalado. À locação de estabelecimento comercial são aplicáveis com as necessárias adaptações as disposições do NRAU relativas ao arrendamento não habitacional.

Assim sendo, a regulamentação da agora designada “locação de estabelecimento” continua a estar totalmente na autonomia das partes, tal como sucede no RAU ainda em vigor, continuando a não carecer de autorização do senhorio a transferência temporária e onerosa do estabelecimento instalado em local arrendado.

Ao invés do que sucede no RAU ainda em vigor, o NRAU passou agora a prever expressamente a obrigação de a “locação de estabelecimento” ser comunicada ao senhorio no prazo máximo de um mês.

2.3.     Resolução contratual com fundamento em incumprimento

Diferentemente do que sucede em sede de RAU, o qual prevê a possibilidade de o arrendatário resolver o contrato com fundamento em incumprimento do senhorio e de o senhorio apenas poder resolver o contrato nos casos legalmente tipificados - o NRAU abre a possibilidade de qualquer das partes resolver o contrato de arrendamento com base em incumprimento pela contraparte do contrato.

Entende-se existir fundamento para resolução quando se verifique uma situação de incumprimento contratual que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à contraparte a manutenção do contrato.

Outra das novidades introduzidas pelo NRAU a este nível prende-se com o facto de, em algumas situações, o senhorio deixar de recorrer à acção judicial de despejo, maxime nos casos de mora no pagamento de renda, encargos ou despesas superior a 3 meses ou de oposição pelo arrendatário à realização de obra ordenada por autoridade pública, operando nestes casos a resolução contratual por mera comunicação enviada ao arrendatário. No entanto, esta resolução fica sem efeito se o arrendatário, no prazo de 3 meses contados desde a recepção da comunicação, colocar termo à situação de mora ou cessar a oposição referidas.

(NOTA: este artigo constitui a primeira parte da análise do Novo Regime do Arrendamento Urbano continuando no próximo número da Vida Imobiliária)

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