A Relevância da Posse para Efeitos de Tributação em IMI

Filipe Romão, Cláudia Reis Duarte.

2006 Vida Imobiliária, n.º 103


Sobre o tema em epígrafe têm vindo a colocar-se uma questão, que no essencial se prende com o conceito de transmissão, ou antes, com a dissonância deste conceito no seio dos dois principais impostos sobre o património, e a propósito da qual importa desfazer o equívoco a que, em nossa opinião, uma primeira e menos cuidada interpretação pode levar, como em seguida se descreve.

Para efeitos de Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (IMT), a promessa de aquisição e de alienação acompanhada da tradição do bem integra o conceito de transmissão de bens imóveis (cf. art.º 2º n.º 2 a) do Código do IMT - CIMT).

Por outras palavras, e como regra geral, o referido dispositivo legal sujeita à incidência de IMT a mudança nos possuidores dos bens que ocorre por força da sua tradição na sequência da celebração de um contrato promessa de compra e venda.

Directamente relacionado com esta regra, o Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (CIMI) atribui ao Chefe de Finanças a competência para, oficiosamente, actualizar “a identidade dos proprietários, usufrutuários, superficiários e possuidores, sempre que tenha conhecimento de que houve  mudança do respectivo titular” (cf. art.º 13º, n.º 3 c) do CIMI).

Com base nos normativos referidos, a Administração Fiscal tem vindo por vezes a sustentar que, uma vez que a tradição é havida por transmissão para efeitos de sujeição e liquidação de IMT, ao chefe de finanças cabe averbar na matriz predial o adquirente promitente/possuidor como proprietário, ou seja, sempre que haja tradição de um bem nas condições enunciadas, o promitente comprador passa a constar da matriz como proprietário.

Trata-se em nossa opinião de uma interpretação errada da lei, pelas razões que em seguida se expõem.

Na realidade, a norma de incidência em IMI, enunciada no art.º 8º do CIMI, estabelece como sujeito passivo deste imposto o proprietário do prédio em 31 de Dezembro do ano a que o imposto respeita (n.º 1), presumindo-se como tal quem figure ou deva figurar na matriz nessa qualidade.

Ora,  segundo as regras gerais da interpretação de normas tributárias, consagradas no art.º 11º, da LGT, o conceito de proprietário, para efeitos de IMI, é aquele que decorre da lei civil: na medida em que o legislador não definiu tal conceito para efeitos fiscais, e se trata de uma figura regulada na lei civil, ele deve ser interpretado no mesmo sentido que aí tem.

Parece-nos evidente e indiscutível que a transmissão da propriedade opera apenas, nos termos da lei civil, por força da escritura pública de compra e venda do imóvel (cf. art.º 874º, 875º e 408º do Código ainda que haja tradição do bem, o proprietário do imóvel é ainda, e será até à data da celebração da respectiva escritura pública de compra e venda, o promitente vendedor.

A pedra de toque na questão em apreço é a diferença entre o conceito de transmissão para efeitos de IMT e de IMI.

Na realidade, e nos termos do CIMT, a tradição de um bem imóvel faz presumir a sua transmissão para efeitos de sujeição a imposto. Bem diferente é o conceito de transmissão relevante para efeitos de IMI, que, reportando-se à lei civil, opera apenas com a transmissão jurídica do mesmo bem (que opera com a escritura pública de compra e venda).

Enquanto o IMT acolhe o conceito económico de transmissão, sujeitando a imposto a mera tradição do bem, o IMI acolhe o conceito estritamente jurídico daquela figura legal, que não prescinde, obviamente, do título translativo.

Por outras palavras, diremos que os efeitos da tradição, nas condições enunciadas, são bem distintos consoante tratemos de IMT ou de IMI. No primeiro caso, a mudança da posse determina a sujeição; no segundo, pode não ter, e em regra não tem, quaisquer implicações na incidência subjectiva do imposto.

Pelo exposto, a mudança de titular da posse deve levar apenas à actualização da identidade do possuidor (uma vez que apenas esse sofreu alterações), mas não ao averbamento deste como proprietário, que não é e nem o será até à celebração da escritura pública de compra e venda do bem, excepto no caso de falta de inscrição do prédio na matriz, em cujo caso se presume como proprietário quem detenha a posse.

Interpretar a alínea c) do n.º 3 do art.º 13º do CIMI como permitindo a actualização da matriz averbando-se o promitente comprador/possuidor como proprietário seria verdadeiramente criar nessa norma uma regra de sujeição a imposto não prevista no art.º 8º do CIMI (normativo que regula a incidência subjectiva).

Porém, e se, contrariamente ao que a lei estabelece, por força da transmissão para efeitos de IMT, o chefe de finanças proceder à actualização da matriz fazendo dela constar o promitente adquirente como proprietário?

De acordo com o n.º 4 do art.º 8º do CIMI, presumir-se-á proprietário, para efeitos de sujeição a IMI, quem como tal figure na matriz, e se o chefe de finanças o averbar como tal, a presunção enunciada aplicar-se-á e ao promitente comprador/possuidor serão emitidas liquidações de IMI relativas ao prédio que prometeu comprar.

Não obstantes, tratando-se aquela disposição - art.º 8º, n.º 4 do CIMI - como é o caso, de uma norma de incidência tributária, a referida presunção pode sempre ser afastada mediante prova em contrário (cf. art.º 73º da LGT).

Embora o promitente comprador/possuidor não possa fazer prova de que não houve transmissão jurídica (pela natural dificuldade associada à prova de um facto negativo), é por outro lado bastante simples provar que o proprietário jurídico do bem - o único que releva para efeitos de sujeição a IMI - é o promitente vendedor.

De facto, basta a simples exibição de uma certidão de registo predial com a inscrição da aquisição a favor do promitente vendedor. Aquele documento faz prova plena da propriedade jurídica do bem (cf. art.ºs 363º, n.º 2 e 371º do Código Civil), ficando por esta via ilidida a presunção.

Assim, e se a Administração Fiscal liquidar IMI ao promitente comprador com base em tal presunção, pode o mesmo lançar mão dos meios legalmente previstos e para afastá-la (seja pedindo a revisão do acto ou mesmo reclamando ou impugnando).

Refira-se ainda que, nos termos do mesmo n.º 4 do mesmo art.º 8º do CIMI, presume-se proprietário quem em 31 de Dezembro tenha a posse do prédio.

Esta regra, contudo, aplica-se apenas na falta de inscrição do prédio na matriz, ou seja, na situação em que não é possível determinar quem é o proprietário do bem, pelo que mesmo nesta situação, e supondo que o prédio em causa é omisso na matriz, o promitente comprador/possuidor pode sempre, nos termos expostos, ilidir essa presunção, fazendo prova da propriedade jurídica do bem através de certidão de registo predial ou de qualquer outro documento que o ateste.

Em jeito de conclusão, diremos que, no contexto de um contrato promessa de compra e venda de um bem imóvel, a tradição, havida como transmissão e determinante da sujeição em IMT, não tem quaisquer efeitos em IMI, com excepção da situação, residual aliás, em que o prédio é omisso na matriz e não é possível fazer prova de quem seja o seu proprietário jurídico.

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