O novo regime jurídico das obrigações hipotecárias em Portugal
2006 Actualidad Jurídica Uría Menéndez. Homenaje al profesor D. Rodrigo Uría González en el centenario de su nacimiento
1. Introdução
As obrigações hipotecárias (OH) foram introduzidas no nosso ordenamento jurídico pelo Decreto-Lei nº 125/90, de 16 de Abril.
Era objectivo do legislador proporcionar ao sector financeiro português a possibilidade de emissão de um instrumento de captação de fundos, já largamente divulgado nos mercados internacionais, o qual, na perspectiva do investidor, tinha o atractivo de ser um investimento de risco reduzido.
Não obstante a flexibilização introduzida pelo Dec.-Lei nº 17/95, apenas duas instituições de crédito recorreram a este instrumento de captação de recursos.
A sobrecarga administrativa que resultava da necessidade de inscrição no registo predial da afectação dos créditos garantidos por tais hipotecas ao cumprimento de OH, acrescida do carácter lacunar da regulamentação existente em determinadas áreas, como a necessidade de segregação dos activos afectos à emissão e a inexistência de regras específicas para lidar com os casos de insolvência das entidades emitentes, impediu o desenvolvimento e proliferação em Portugal de um mercado de OH.
Após algumas vicissitudes, decorrentes sobretudo das sucessivas mudanças das equipas governamentais, foi finalmente publicado, em 20 de Março de 2006, o Decreto-Lei nº 59/2006.
Para além de uma maior flexibilização do regime aplicável às OH, destacando-se o termo da necessidade de inscrição no registo predial da afectação dos créditos hipotecários ao cumprimento das emissões de OH, são de saudar as notas de actualização trazidas pelo regime, nomeadamente a previsão da possibilidade de utilização de instrumentos financeiros derivados para a cobertura de riscos cambiais, de taxa de juro ou de liquidez.
O novo diploma alarga também o leque de entidades emitentes, através da criação de uma nova espécie de instituição de crédito, as instituições de crédito hipotecário.
Ainda como nota de novidade, refira-se a criação de um novo instrumento financeiro, as Obrigações sobre o Sector Público (OSP), as quais, na senda das Öffentliche Pfandbriefe alemãs, das Cédulas Territoriales espanholas ou das Public Sector Asset Covered Securities irlandesas, têm como activos subjacentes créditos sobre, ou com garantia de, administrações centrais ou autoridades regionais e locais de um dos Estados membros da União Europeia.
2. Regime Jurídico das Obrigações Hipotecárias
Iremos passar de seguida em revista, de um modo necessariamente resumido, alguns dos principais aspectos do novo regime legal das OH.
2.1. Emitentes
Assim, as OH apenas podem ser emitidas por instituições de crédito legalmente autorizadas a conceder créditos garantidos por hipoteca que disponham de fundos próprios não inferiores a € 7.500.000 (art. 2º) (2).
No entanto, foi criado um novo tipo de instituições de crédito, especialmente vocacionado para a emissão de OH.
Trata-se das instituições de crédito hipotecário (ICH) cujo objectivo é o de conceder, adquirir e alienar (i) créditos garantidos por hipoteca sobre bens imóveis com vista à emissão de OH (art. 6º nº1), (ii) ou créditos sobre administrações centrais ou autoridades regionais e locais de um dos Estados membros da União Europeia e créditos garantidos por tais entidades, com vista à emissão de OSP (art. 6º nº2).
2.2. Emissão
Às OH e à sua emissão não são aplicáveis as regras relativas às obrigações constantes do Capítulo IV do Título IV do Código das Sociedades Comerciais (artigos 348º a 372º-B do CSC), com excepção dos artigos 335º a 359º do CSC, relativos às assembleias de obrigacionistas e ao seu representante comum, os quais se mantêm aplicáveis com as especificidades constantes do artigo 14º do Dec.-Lei nº 59/2006.
A emissão de OH também não está sujeita a registo comercial.
2.3. Garantia da Emissão
As OH encontram-se garantidas pelos créditos hipotecários, incluindo os juros e reembolsos que tenham sido pagos, bem como pelos restantes activos que, nos termos do artigo 17º, estejam afectos a essas OH (cfr. art. 4º nº1).
O conjunto (i) desses créditos hipotecários, (ii) das quantias que tenham sido pagas ao seu abrigo a título de juros e reembolsos de capital e (iii) dos restantes activos que estejam afectos às OH nos termos previstos na lei (cfr. art. 17º), formam um património autónomo e não respondem por quaisquer dívidas da emitente até à concorrência do seu produto e até ao pagamento de todos os montantes que sejam devidos aos titulares das OH (cfr. art. 4º nº2).
Aos titulares das OH é conferido um privilégio creditório especial sobre os activos que estão afectos às OH e que constituem o património autónomo, com precedência sobre quaisquer outros credores da entidade emitente (cfr. art. 3º nº 1), não estando esse privilégio creditório sujeito a registo (cfr. art. 3º nº 3).
Os credores obrigacionistas são representados, em conjunto, por um Representante Comum dos Obrigacionistas (RCO), o qual deve ser inicialmente designado pelo órgão de administração da emitente, sendo único para todas as emissões de OH ou de OSP emitidas pela mesma entidade.
Os activos que podem estar afectos à garantia das OH são os seguintes:
(a) créditos pecuniários detidos pelas entidades que reúnam as seguintes características (i) sejam vincendos, (ii) não estejam sujeitos a condição, (iii) se encontrem livres de ónus ou encargos (iv) e estejam garantidos por primeira hipoteca sobre bens imóveis destinados a habitação ou para fins comerciais situados num país da UE;
(b) depósitos no Banco de Portugal, de moeda ou títulos elegíveis no âmbito das operações de crédito do Eurosistema;
(c) depósitos, à ordem ou a prazo, constituídos junto de instituições de crédito com notação de risco igual ou superior a «A-» ou equivalente; e,
(d) outros activos que preencham simultaneamente requisitos de baixo risco e elevada liquidez, a definir por Aviso do Banco de Portugal (cfr. artigos 16º nº 1 e 17º nº 1).
O montante de cada crédito afecto à garantia de OH (i) não pode exceder o valor das hipotecas, (ii) nem 80% ou 60% do valor do bem hipotecado, consoante este se destine à habitação ou a fins comerciais, respectivamente, incidindo sobre a entidade emitente um dever de regularizar a situação sempre que estes limites não sejam respeitados.
É da exclusiva responsabilidade da entidade emitente determinar o valor dos bens hipotecados, o que deve ser feito nos termos do previsto no Aviso nº 5/2006 do Banco de Portugal, que prevê regras específicas para o efeito, incluindo a obrigatoriedade de revisão periódica das avaliações efectuadas e o controlo do cumprimento das normas constantes desse aviso pelo auditor independente.
Refira-se ainda que a entidade emitente pode alienar ou onerar créditos que estejam afectos à emissão, desde que providencie pela sua substituição por créditos que obedeçam aos mesmos requisitos de elegibilidade.
2.4. Regras Prudenciais
No domínio prudencial, cumpre salientar as seguintes regras:
(a) valor nominal global das OH em circulação não pode ultrapassar 95% do valor nominal global dos créditos hipotecários e dos outros activos que lhes estejam afectos;
(b) o vencimento médio das OH em circulação não pode ultrapassar, a todo o tempo, o vencimento médio dos créditos hipotecários e dos outros activos que lhes estejam afectos;
(c) o montante global dos juros a pagar em virtude das OH, não deve exceder, em cada momento, o montante dos juros a receber ao abrigo dos créditos hipotecários e dos outros activos que estejam afectos às OH (cfr. art. 19º).
2.5. Instrumentos Financeiros Derivados
A lei permite ainda que sejam realizadas operações sobre instrumentos financeiros derivados, os quais se devem considerar integrantes do património afecto à garantia das OH e ser contabilizados para efeitos do apuramento dos limites prudenciais supra referidos, desde que os mesmos se destinem exclusivamente à cobertura de riscos, designadamente riscos de taxa de juro, cambial ou de liquidez (cfr. art. 20º nº 1).
Esses instrumentos financeiros derivados devem ser objecto de um registo próprio nos termos mencionados supra em 2.5.1. e as contrapartes em tais operações beneficiam, relativamente aos créditos emergentes das mesmas, do privilégio creditório estabelecido no nº 1 do art. 3º (cfr. art. 20º nº 3).
2.6. O Auditor Independente
O cumprimento dos requisitos legais e regulamentares aplicáveis às OH é verificado por um Auditor independente, o qual deve actuar na defesa dos titulares das obrigações (cfr. art. 34º nº 1).
A designação do auditor independente é da competência do órgão de administração da entidade emitente (cfr. art. 34º nº 1), devendo essa designação ser efectuada com a antecedência mínima de um mês relativamente à data da emissão das OH (cfr. nº 2.1. da Instrução do Banco de Portugal nº 13/2006).