O novo regime dos contratos sobre o exercício de poderes de planeamento urbanístico: pode propor-se um plano urbanístico à câmara municipal?

Gonçalo Reino Pires.

2008 Vida Imobiliária, n.º 120


Com a aprovação do Decreto-Lei n.º 316/2007, de 19 de Setembro, que alterou o Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (“RJIGT”) constante do Decreto-Lei n.º 380/99, de 22 de Setembro, foi, finalmente, dado um contexto normativo concreto aos chamados contratos para planeamento, o que permite que saia da sombra uma prática já comum das autarquias locais e dos promotores urbanísticos, cuja alegada inadmissibilidade somente poderia ser justificada por puro preconceito.

 

Introdução

O regime dos contratos através dos quais um privado acorda com um município a elaboração, a revisão ou a alteração de um plano municipal de ordenamento do território foi objecto de um aprofundamento relevante ao longo do ano passado, que se deve, mais precisamente, à aprovação de normas ou directrizes vertidas em três diplomas distintos.

Em primeiro lugar, como já se referiu, é importante sublinhar a aprovação de um novo artigo 6.º-A no âmbito do RJIGT, cuja epígrafe é “contratualização”, e que se refere a contratos entre os municípios e os particulares para a elaboração de planos de urbanização (“PU”) ou de planos de pormenor (“PP”) por parte destes.

Em segundo lugar, devemos realçar o impulso, embora tímido, que foi dado à figura do programa de acção territorial (“PAT”) pela aprovação do Programa Nacional da Política do Ordenamento do Território (“PNPOT”), sendo certo que aquele programa é uma forma de promover a coordenação entre vários actores, tanto públicos como privados, na elaboração e execução do planeamento territorial.

Em terceiro lugar, e de uma perspectiva muito mais abrangente, devemos ainda enquadrar os contratos sobre o exercício de poderes de planeamento na categoria mais vasta de contratos sobre o exercício de poderes públicos, que têm agora um regime próprio previsto no recém-aprovado Código dos Contratos Públicos (“CCP”).

Comecemos por ver com mais atenção o disposto neste Código.

 

O Código dos Contratos Públicos

Embora tenha padecido de uma gestação atribulada, com o projecto a ser colocado em discussão pública no final do primeiro semestre do ano passado, com o projecto a ser aprovado em Conselho de Ministros em Setembro e com a versão final a ser enviada para promulgação apenas em início de Dezembro, o CCP, caso seja promulgado pelo Presidente da República, deve ser publicado em Diário da República no início deste ano de 2008.

Desconhecendo-se a numeração final do articulado, apenas podemos, por ora, afiançar que o regime previsto neste Código a respeito dos contratos sobre o exercício de poderes públicos, aplicáveis também aos contratos para planeamento, assenta sobre três ideias distintas:

a)    As partes têm a faculdade de fixar livremente o prazo de vigência e os pressupostos de modificação, caducidade, revogação ou resolução do contrato;

b)   Estes contratos extinguem-se, ou o contraente público pode resolver o contrato, caso ocorra uma alteração das circunstâncias de facto em que a entidade pública fundou a sua vontade em contratar o exercício dos seus poderes em determinado sentido;

c)    As normas gerais relativas à prestação de caução pelo contraente privado e à celebração do contrato, nomeadamente no que respeita ao cumprimento das exigências de forma escrita, de conteúdo mínimo do contrato e de procedimento de negociação tendente à determinação da minuta do contrato, são aplicáveis no âmbito dos contratos para o exercício de poderes públicos.

Assim, para além do seu regime específico vertido no RJIGT e no PNPOT, os contratos para planeamento devem também respeitar o regime geral dos contratos para o exercício de poderes públicos.

 

A contratualização no “novo” Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (os contratos previstos no artigo 6.º-A)

No preâmbulo do Decreto-Lei n.º 316/2007, de 19 de Setembro, dá-se desde logo uma indicação a respeito dos objectivos prosseguidos pelo legislador com a previsão expressa de um regime de contratualização de poderes de planeamento: “Em concretização ainda do princípio da concertação de interesses públicos e privados envolvidos na ocupação do território e da contratualização e, reconhecendo expressamente no domínio do ordenamento do território, a faculdade que decorre da autonomia pública contratual, procede-se ao enquadramento normativo dos designados contratos para planeamento, clarificando os princípios fundamentais a que se encontram sujeitos por força da irrenunciabilidade e indisponibilidade dos poderes públicos de planeamento, da transparência e da publicidade, tendo em conta os limites decorrentes das regras gerais relativas à contratação pública”.

Na nossa opinião, o regime vertido no artigo 6.º-A dá, na generalidade, resposta a estas preocupações e objectivos.

Antes de mais, deve ter-se em atenção às especificidades que caracterizam o procedimento legalmente previsto para a contratualização do planeamento, nomeadamente em função dos princípios da transparência e da publicidade da actividade administrativa:

a)    A iniciativa pertence aos particulares, que podem apresentar à câmara municipal uma proposta de contrato tendo em vista a elaboração, revisão ou alteração de um PU ou PP, podendo abranger também a respectiva execução;

b)   A câmara municipal delibera sobre a vontade em contratar e a aprovação da minuta do contrato, devendo fundamentar a opção de contratar com o particular tendo especial atenção (i) na identificação das razões que justificam a adopção do contrato, (ii) na inserção do plano em causa na estratégia inerente aos instrumentos de gestão territorial aplicáveis, e (iii) sobre a eventual necessidade de alteração de planos municipais de ordenamento do território em vigor;

c)    A proposta de contrato e a deliberação a que acima se alude são publicitadas, para discussão pública, pelo prazo de 10 dias, devendo os resultados desta discussão pública ser ponderados e essa ponderação ser reflectida na decisão final de contratar;

d)   Os contratos são sempre publicitados em conjunto com a publicitação da deliberação que determina a elaboração do plano (ou seja, durante a chamada “participação preventiva”) e em conjunto com a proposta de plano levada a discussão pública (isto é, durante a chamada “participação sucessiva”).

Por outro lado, já no que concerne ao seu regime material, consagra-se expressamente a chamada “cláusula de compatibilidade do objecto do contrato com o resultado do procedimento”. Concretizando esta ideia, decorre da existência desta cláusula que o contrato não obriga, como não pode deixar de ser, à realização de prestações desconformes com o regime legal vigente, quer nos seus aspectos materiais, quer mesmo nos seus aspectos formais (como o procedimento).

A função desta cláusula, ao que julgamos, é eximir as entidades públicas de eventuais deveres de indemnização dos particulares. Neste sentido, caso se verifique um incumprimento do contrato, por parte do contraente público, por razões que se prendem com o cumprimento da legalidade, os eventuais danos na esfera do contraente privado decorrentes do investimento de confiança no contrato não serão, à partida, indemnizáveis. E dizemos apenas à partida não só porque, evidentemente, serão indemnizáveis os danos que não decorrerem exclusivamente da necessidade de cumprimento da lei, mas também porque, em certas situações, deverá ser assegurada a indemnização dos danos causados no interesse contratual negativo, nomeadamente as despesas em que o particular já tenha legitimamente incorrido em sede de execução do contrato.

Note-se que o que aqui está em causa apenas incidentalmente se encontra relacionado com o poder de resolução do contrato por alteração das circunstâncias de facto em que a entidade pública fundou a sua vontade em contratar (cfr. o disposto no CCP). De facto, nesta situação impenderá sempre sobre a Administração o dever de indemnizar o contraente particular, pelo menos no que respeita aos danos contratuais negativos, de modo a dar cumprimento ao princípio da igualdade perante os encargos públicos (um dano que se repercute na esfera de um particular e que tem origem na prossecução do interesse público deve ser suportado por toda a comunidade e não apenas pelo particular em concreto que o sofreu).

Por fim, é importante ter presente que o contrato não estabelece o regime de uso do solo, nem concede direitos de uso do solo aos particulares contratantes, uma vez que apenas os planos municipais de ordenamento do território podem definir esse regime classificando e qualificando o solo. A lei, a este trecho, expressa uma norma que decorre já de outras normas, quer do RJIGT, quer da Lei de Bases da Política do Ordenamento do Território e do Urbanismo (“LBPOTU”), aprovada pela Lei n.º 48/98, de 11 de Agosto.

 

A contratualização no “velho” Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (os programas de acção territorial previstos no artigo 121.º)

Não obstante o ênfase colocado pelo legislador nos novos contratos para planeamento, parece que foi relegada para segundo plano, se não mesmo esquecida, a figura dos PAT, prevista nos artigos 17.º da LBPOTU e 121.º do RJIGT. Os PAT não são mais do que contratos através dos quais as entidades interessadas na execução de planos municipais de ordenamento, sejam elas públicas ou privadas, acordam a coordenação das várias intervenções que aquela execução reclama.

Em termos materiais, os PAT têm por base um diagnóstico das tendências de transformação das áreas a que se referem, definem os objectivos a atingir no período da sua vigência, especificam as acções a realizar pelas entidades neles interessadas e estabelecem o escalonamento temporal dos investimentos neles previstos, designadamente, definindo as prioridades de actuação na execução do plano director municipal e dos planos de urbanização, programando as operações de reabilitação, reconversão, consolidação e extensão urbana a realizar nas unidades operativas de planeamento e gestão, e definindo a estratégia de intervenção municipal nas áreas de edificação dispersa e no espaço rural.

Considerando que o disposto na alínea d) do n.º 2 do artigo 29.º do RJIGT estatui que é o PNPOT que define as condições de realização dos PAT, deve ser referido que este instrumento já efectuou essa definição, nomeadamente no Capítulo III do seu Programa de Acção (directrizes para os instrumentos de gestão territorial). De entre as várias condições aprovadas, realçamos a constante do ponto 40, que afirma o seguinte: “os PAT devem também ser utilizados para negociar, programar e contratualizar a elaboração de PU e PP, a realização das operações fundiárias necessárias à execução destes planos, a realização de infra-estruturas urbanas e territoriais e de outras obras de urbanização e edificação neles previstas, bem como a implantação de equipamentos públicos e privados de utilização colectiva, fornecendo à condução dessas actuações urbanísticas as necessárias segurança jurídica, programação técnica e transparência”.

 

Conclusões

Do brevíssimo excurso que foi realizado, demonstra-se existirem razões para aplaudir a opção do legislador em institucionalizar este tipo de contratos, dotando o procedimento tendente à sua celebração e execução da publicidade e transparência reclamadas por uma aparência de imparcialidade, isto num domínio sempre complicado como o do urbanismo.

No entanto, não podemos deixar de dirigir três críticas ao actual contexto deste tipo de contratos, todas elas por força de falta de articulação entre normas legais.

A primeira prende-se com a falta de justificação para o facto de não se prever expressamente a aplicabilidade das figuras contratuais referidas ao plano director municipal, mais precisamente a procedimentos de alteração parcial deste tipo de plano. Nada o justifica, uma vez que não só os interesses em causa e a vinculações legais a observar são exactamente as mesmas, como também a aplicação das normas e princípios gerais da contratação pública possibilita a existência de contratos sobre a alteração de planos directores municipais.

A segunda crítica radica na falta de articulação legal entre o regime previsto no artigo 6.º-A e o regime dos PAT, sendo certo que há não raros casos em que um contrato poderá ser simultaneamente reconduzido às duas figuras jurídicas.

A terceira crítica, ainda carente de confirmação final porquanto depende da versão final do CCP, encontra-se relacionada com a articulação entre o regime geral da contratação pública, nomeadamente no que respeita ao cumprimento das exigências de tutela da concorrência e à forma de determinação do co-contratante, e o regime deste tipo de contratos. Este aspecto não é, efectivamente, de somenos importância, justo porque, na larga maioria das vezes, o interesse de um particular na implementação de um plano urbanístico decorre da existência de uma situação muito específica ligada à titularidade de terrenos compreendidos na área de intervenção do plano.

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