O registo provisório de aquisição e o contrato promessa de compra e venda de bens imóveis com eficácia real

Vasco Amaral Cunha, José Costa Pinto.

2008 Vida Imobiliária, n.º 124


1. Introdução

Quando se negoceia qualquer contrato, um dos aspectos fundamentais que as partes devem cuidar prende-se com as garantias que as salvaguardem das eventuais quebras contratuais da respectiva contra-parte. No amplo campo da “autonomia privada”, no qual impera a igualdade das partes e a liberdade para estipular tudo o que a lei não proíbe, as hipóteses e as soluções jurídicas são variadas.

O critério que deve presidir à escolha entre as várias opções está sempre associado aos respectivos efeitos jurídicos que a mesma, pelo menos potencialmente, pode garantir e produzir, pelo que conhecer e saber distinguir juridicamente os diferentes institutos torna-se fundamental. O registo provisório de aquisição e o contrato promessa com eficácia real são dois institutos que, numa primeira linha, aparentam possuir características e efeitos próximos. No entanto, a verdade é que, apesar da relativa indefinição resultante da lei, as duas figuras ou institutos jurídicos têm diferenças estruturais fundamentais, que importa analisar e descrever.

2. Contrato Promessa de Compra e Venda de um Bem Imóvel Com Eficácia Real

O contrato promessa é a “convenção pela qual alguém se obriga a celebrar um certo contrato” (cfr. artigo 410.º do Código Civil - “CC”). Quanto, através desse “certo contrato”, que as partes se obrigaram a celebrar se transmite a propriedade de um bem imóvel mediante um preço, estamos perante a figura do Contrato Promessa de Compra e Venda de um Bem Imóvel (“CPCV”).

Devemos ter presente que, em qualquer circunstância, o CPCV não tem por efeito a transmissão da propriedade do bem a que respeita. Este efeito apenas se obtém com a celebração do contrato prometido, ou seja, da escritura de compra e venda. Por outro lado, como qualquer contrato de natureza obrigacional, o CPCV apenas gera efeitos entre as partes que o celebram. Consequentemente, por natureza, o CPCV não pode ser oposto a um terceiro, o que significa que nenhum dos contraentes poderá fazer valer um direito resultante desse CPCV perante outro que não o seu co-contratante.

A lei prevê que mediante o preenchimento de determinados requisitos possa ser atribuída uma eficácia acrescida ao CPCV, permitindo, designadamente, que ganhe uma força jurídica que ultrapassa a mera relação entre as partes e atinja também terceiros. Juridicamente, esta “eficácia acrescida” designa-se por “eficácia real”.

Nos termos do número 1 do artigo 413.º do CC, “à promessa de transmissão ou constituição de direitos reais sobre bens imóveis, ou móveis sujeitos a registo, podem as partes atribuir eficácia real, mediante declaração expressa e inscrição no registo”. No caso do CPCV, a eficácia real deverá constar de escritura pública, pois essa é a forma exigida para o contrato prometido. A promessa deve ser, ainda, registada.

Uma vez atribuída validamente eficácia real a um CPCV este, como se disse, adquire uma eficácia “supra-partes” o que determina, por exemplo, que o promitente comprador possa exercer o seu direito em relação a terceiros. Isto porque, em termos técnicos, o direito resultante desse CPCV se transforma num “direito real de aquisição”, gozando, por isso, de sequela sobre o bem, característica própria dos direitos reais.

Sublinhe-se que a “sequela” é a pedra de toque deste regime do CPCV com eficácia real, da qual deriva, se não toda, a grande parte da sua força jurídica e importância. Isto porque consiste, sumariamente, na susceptibilidade desse direito ser exercido sobre a coisa a que respeita, mesmo que esta se encontre na posse ou detenção de um terceiro (i.e. a respectiva reivindicação e restituição).

Pelo exposto, num CPCV com eficácia real o promitente comprador adquire um direito real de aquisição sobre o bem imóvel em causa, independentemente de quem seja o seu proprietário na mesma data.

No entanto, o direito do promitente comprador pode ser tutelado ou protegido de outras formas, designadamente através do registo provisório de aquisição.

3. O registo provisório de aquisição

O registo provisório de aquisição, previsto e permitido pelo artigo 47.º do Código do Registo Predial (“CRP”) pode ser feito de uma de duas formas: (i) com base em declaração do proprietário inscrito ou do titular do direito (com assinatura reconhecida presencialmente); ou (ii) com base em contrato promessa de alienação. Os efeitos decorrentes do registo feito com base em declaração do proprietário (e consideraremos, de futuro, que proprietário equivale a titular do direito) são os mesmos do registo feito com base no contrato promessa de alienação e ambos redundam num registo que, por força de lei, é provisório por natureza. No entanto, a lei estabelece igualmente que o registo provisório feito com base em contrato promessa tem uma validade inicial de 6 meses, renovável por períodos adicionais de igual duração e até 1 ano após a data fixada pelas partes para a celebração da respectiva escritura pública (desde que as renovações se fundem em declaração das partes). Já o registo provisório de aquisição feito com base em declaração do proprietário subsume-se na regra geral - é válido por um período de apenas 6 meses, a não ser que seja convertido nos termos previstos na lei (ainda que nada obste a que se apresente novo registo provisório de aquisição em face da caducidade do anterior).

Como decorre da lógica do instituto, o registo provisório tem de ser convertido em definitivo, por forma a cristalizar e estabelecer, em termos registais, o facto que lhe serve de objecto. No caso do registo provisório de aquisição, a conversão é feita através da apresentação e submissão a registo do documento que titula a aquisição da propriedade (seja, por exemplo, a escritura pública de compra e venda ou a escritura de justificação notarial).

Questão mais controversa é a de saber quais os efeitos que decorrem de um registo provisório de aquisição, sendo certo que a Direcção-Geral dos Registos e Notariado (agora rebaptizada de Instituto dos Registos e Notariado) e o Supremo Tribunal de Justiça têm opiniões divergentes sobre esta matéria.

Em termos muito sumários, para o Instituto dos Registos e Notariado, o registo provisório de aquisição confere uma prioridade pré-tabular, cautelar, que permite ao beneficiário desse registo (o promitente comprador) opor a terceiros, desde a data de registo, o direito de adquirir o imóvel prometido adquirir no futuro. Os efeitos do registo estão condicionados à sua conversão em definitivo, sendo certo que os efeitos do registo definitivo retroagem à data do registo provisório. No fundo, para o referido Instituto, do registo provisório resulta a possibilidade de opor a terceiros a existência desse mesmo registo, acrescentando à declaração de alienação do proprietário ou ao contrato promessa sem eficácia real um efeito (ou eficácia) que transcende a mera e inerente eficácia obrigacional (ou “inter partes”) da declaração ou do contrato.

Por seu lado, o Supremo Tribunal de Justiça adoptou uma posição idêntica à do Instituto dos Registos e Notariado em acórdãos de 2000 e de 2001, mas veio a inflectir essa posição em 2002, quando negou que o registo provisório de aquisição pudesse, em certos casos, atribuir qualquer tipo de prioridade pré-tabular ou permitisse ao seu beneficiário opor a existência desse mesmo registo a determinados terceiros.

Na nossa opinião, o registo provisório de aquisição confere, efectivamente, uma prioridade pré-tabular ao seu beneficiário. Desde o momento em que o registo provisório de aquisição é lavrado e até ao momento em que a aquisição é definitivamente registada (através de averbamento à inscrição), o beneficiário do registo tem a certeza de que o seu registo goza da prioridade que lhe é conferida pelos princípios da prioridade e do trato sucessivo que orientam o sistema de registo predial português e que se sobreporá a quaisquer registos posteriores. Corolário disto mesmo é o estipulado no número 3 do artigo 6.º do CRP: uma vez convertido, o registo conserva a prioridade que tinha como provisório. Por outras palavras, a conversão do registo provisório em definitivo faz retroagir os efeitos do registo de aquisição definitiva à data de feitura do registo provisório, ou seja, o beneficiário do registo provisório será considerado, em termos registais, como proprietário do imóvel desde a data do registo provisório (por efeito de uma ficção jurídica criada pelo próprio registo predial).

Apesar de não conferir uma atribuição de eficácia real ao contrato promessa (porque não cria, a favor do beneficiário, qualquer direito real de aquisição), o registo provisório de aquisição confere ao seu beneficiário a protecção da sua oponibilidade a terceiros (obtida através da sua inscrição no registo), a qual tem valor inclusive em caso de alienação do imóvel a um terceiro. Em termos práticos, imagine-se que o proprietário do imóvel celebra contrato promessa de compra e venda com um promitente comprador e é inscrito um registo provisório de aquisição a favor deste. Posteriormente, o proprietário aliena o imóvel em questão a um terceiro e este consegue inscrever a aquisição do imóvel a seu favor no registo. Por existir um registo provisório anterior incompatível com o seu (o registo provisório de aquisição a favor do promitente comprador), a aquisição do imóvel pelo terceiro será lavrada provisória por natureza, nos termos do CRP. E o promitente comprador, enquanto o seu registo provisório se mantiver válido (ou seja, antes de que caduque, nos termos gerais), poderá requerer a anulação da alienação do imóvel ao terceiro e requerer a execução específica do contrato promessa que havia celebrado com o proprietário. Isto porque: (i) o terceiro não pode ser considerado como terceiro de boa fé (existia um registo provisório inscrito a favor do promitente comprador, que o terceiro conhecia ou tinha a obrigação de conhecer); e (ii) o registo provisório de aquisição do promitente comprador tem prioridade sobre o registo de aquisição do terceiro e, uma vez convertido em definitivo, verá os seus efeitos retroagir à data da feitura do registo provisório.

4. Conclusões

Da análise dos dois institutos (a eficácia real do contrato promessa e o registo provisório de aquisição), resultam algumas diferenças que são relevantes na hora de decidir por um ou por outro.

Desde logo, e como referido, o contrato promessa investido de eficácia real nos termos do CC tem por efeito principal a constituição de um direito real de aquisição a favor do promitente comprador. Este direito real reveste-se e goza de todas as características inerentes a qualquer outro direito real (a tendencial perpetuidade, a prevalência, a inerência, a tipicidade, a publicidade e, claro, a sequela). O promitente comprador de uma promessa com eficácia real goza do direito que maior protecção pode conferir aos seus interesses e às suas pretensões. Com base nisso, tem a faculdade de fazer valer o seu direito potestativo de aquisição em relação a qualquer terceiro e em qualquer circunstância. No fundo, e por efeito da sequela, o seu direito real de aquisição “segue” sempre o imóvel, independentemente das vicissitudes que tal imóvel possa sofrer, inclusivamente eventuais transmissões.

Já o beneficiário do registo provisório de aquisição continua a ter um direito de natureza obrigacional. Este direito e, no entanto, distinto do mero direito decorrente de um contrato promessa sem eficácia real e em que não existe registo provisório de aquisição, porque é oponível a terceiros e porque permite ao beneficiário gozar de uma prioridade pré-tabular nos termos já explicados. Mas que não chega a ser um direito real e que, por isso mesmo, não traz inerente qualquer faculdade de sequela.

Em termos práticos, isto significa que o titular do direito real de aquisição, no caso em que o proprietário aliena o imóvel (sobre o qual tem esse direito real de aquisição) a um terceiro posteriormente à celebração da promessa com eficácia real e à sua inscrição no registo, o titular do direito real poderá exigir, do proprietário o cumprimento da promessa de transmissão e, se for o caso, a execução específica da promessa com eficácia real e, simultaneamente, a restituição do imóvel. Ou seja, por efeito da sequela, o titular do direito real de aquisição pode exercer este seu direito, em qualquer momento, de forma potestativa (unilateral) directamente contra o terceiro adquirente (exactamente porque o seu direito real “seguiu” o imóvel até à esfera jurídica do terceiro).

No que toca ao beneficiário de um registo provisório de aquisição, atendendo às características do seu direito e às faculdades especiais que esse direito reveste com o registo provisório, em face da mesma situação (alienação do imóvel pelo proprietário a um terceiro adquirente de má fé), poderá exigir (contra o proprietário e o terceiro adquirente) a anulação desta alienação ao terceiro adquirente e, subsequentemente, exigir (face ao promitente vendedor ou proprietário) a execução específica do contrato promessa que havia celebrado com o proprietário. No entanto, apenas poderá fazer-se valer do seu registo provisório enquanto este se mantiver válido: dentro de 6 meses ou mais, mas sempre com um limite máximo de tempo, consoante o seu registo resulte de declaração do proprietário ou de contrato promessa de alienação. Verificada a caducidade desse registo provisório, o beneficiário não mais poderá fazê-lo valer contra terceiros e a alienação ao terceiro adquirente ficará perfeita e cristalizará os seus efeitos em termos de registo.

Para além do exposto, importa ainda frisar que um beneficiário de um registo provisório de aquisição, ao converter o registo em definitivo, verá os efeitos desse registo definitivo retroagirem à data do registo provisório, uma vez que o facto sujeito a registo é a aquisição propriamente dita e que as regras de registo predial ditam que a conversão do registo implica essa mesma retroactividade dos efeitos. No caso da promessa com eficácia real, tal não sucede. Com efeito, neste último caso, o que é objecto de registo é a própria promessa. E, após a outorga da respectiva escritura pública de compra e venda, o registo de aquisição não tem quaisquer efeitos retroactivos.

Por isso mesmo, para que o promitente comprador possa ter legitimidade para apresentar um subsequente registo provisório de hipoteca, terá de existir sempre um registo provisório de aquisição anterior (ou um registo definitivo de aquisição anterior) a seu favor. O que significa que o promitente comprador numa promessa com eficácia real, ainda que goze de um registo definitivo (que é, exactamente, o da promessa), terá sempre de recorrer ao expediente do registo provisório de aquisição para poder requerer o registo provisório de hipoteca.

Finalmente, importa ainda referir que, como já referido, a protecção conferida pelo registo provisório de aquisição é limitada no tempo e caduca se o registo não for convertido em definitivo. Já no caso da promessa com eficácia real, a protecção que é conferida por esta é tendencialmente ilimitada (apesar de limitada ao prazo de vigência do respectivo contrato promessa): estamos perante um registo definitivo, um direito real de aquisição que se impõe sobre e onera o imóvel (independentemente do número de transmissões que exista e de quem seja o seu proprietário).

Como vimos, apesar das semelhanças aparentes, os dois institutos têm diferenças fundamentais em termos de natureza e estrutura jurídicas. Importa, no momento da celebração de um contrato promessa de compra e venda de imóvel, ter presentes essas diferenças (e semelhanças), por forma a poder optar pelo instituto que maior protecção jurídica confira às pretensões de cada uma das partes envolvidas e que melhor sirva para prosseguir as intenções e vontades respectivas.

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