O registo provisório de aquisição e o contrato promessa de compra e venda de bens imóveis com eficácia real
2008 Vida Imobiliária, n.º 124
1. Introdução
Quando se negoceia qualquer contrato, um dos aspectos fundamentais que as partes devem cuidar prende-se com as garantias que as salvaguardem das eventuais quebras contratuais da respectiva contra-parte. No amplo campo da “autonomia privada”, no qual impera a igualdade das partes e a liberdade para estipular tudo o que a lei não proíbe, as hipóteses e as soluções jurídicas são variadas.
O critério que deve presidir à escolha entre as várias opções está sempre associado aos respectivos efeitos jurídicos que a mesma, pelo menos potencialmente, pode garantir e produzir, pelo que conhecer e saber distinguir juridicamente os diferentes institutos torna-se fundamental. O registo provisório de aquisição e o contrato promessa com eficácia real são dois institutos que, numa primeira linha, aparentam possuir características e efeitos próximos. No entanto, a verdade é que, apesar da relativa indefinição resultante da lei, as duas figuras ou institutos jurídicos têm diferenças estruturais fundamentais, que importa analisar e descrever.
2. Contrato Promessa de Compra e Venda de um Bem Imóvel Com Eficácia Real
O contrato promessa é a “convenção pela qual alguém se obriga a celebrar um certo contrato” (cfr. artigo 410.º do Código Civil - “CC”). Quanto, através desse “certo contrato”, que as partes se obrigaram a celebrar se transmite a propriedade de um bem imóvel mediante um preço, estamos perante a figura do Contrato Promessa de Compra e Venda de um Bem Imóvel (“CPCV”).
Devemos ter presente que, em qualquer circunstância, o CPCV não tem por efeito a transmissão da propriedade do bem a que respeita. Este efeito apenas se obtém com a celebração do contrato prometido, ou seja, da escritura de compra e venda. Por outro lado, como qualquer contrato de natureza obrigacional, o CPCV apenas gera efeitos entre as partes que o celebram. Consequentemente, por natureza, o CPCV não pode ser oposto a um terceiro, o que significa que nenhum dos contraentes poderá fazer valer um direito resultante desse CPCV perante outro que não o seu co-contratante.
A lei prevê que mediante o preenchimento de determinados requisitos possa ser atribuída uma eficácia acrescida ao CPCV, permitindo, designadamente, que ganhe uma força jurídica que ultrapassa a mera relação entre as partes e atinja também terceiros. Juridicamente, esta “eficácia acrescida” designa-se por “eficácia real”.
Nos termos do número 1 do artigo 413.º do CC, “à promessa de transmissão ou constituição de direitos reais sobre bens imóveis, ou móveis sujeitos a registo, podem as partes atribuir eficácia real, mediante declaração expressa e inscrição no registo”. No caso do CPCV, a eficácia real deverá constar de escritura pública, pois essa é a forma exigida para o contrato prometido. A promessa deve ser, ainda, registada.
Uma vez atribuída validamente eficácia real a um CPCV este, como se disse, adquire uma eficácia “supra-partes” o que determina, por exemplo, que o promitente comprador possa exercer o seu direito em relação a terceiros. Isto porque, em termos técnicos, o direito resultante desse CPCV se transforma num “direito real de aquisição”, gozando, por isso, de sequela sobre o bem, característica própria dos direitos reais.
Sublinhe-se que a “sequela” é a pedra de toque deste regime do CPCV com eficácia real, da qual deriva, se não toda, a grande parte da sua força jurídica e importância. Isto porque consiste, sumariamente, na susceptibilidade desse direito ser exercido sobre a coisa a que respeita, mesmo que esta se encontre na posse ou detenção de um terceiro (i.e. a respectiva reivindicação e restituição).
Pelo exposto, num CPCV com eficácia real o promitente comprador adquire um direito real de aquisição sobre o bem imóvel em causa, independentemente de quem seja o seu proprietário na mesma data.
No entanto, o direito do promitente comprador pode ser tutelado ou protegido de outras formas, designadamente através do registo provisório de aquisição.
3. O registo provisório de aquisição
O registo provisório de aquisição, previsto e permitido pelo artigo 47.º do Código do Registo Predial (“CRP”) pode ser feito de uma de duas formas: (i) com base em declaração do proprietário inscrito ou do titular do direito (com assinatura reconhecida presencialmente); ou (ii) com base em contrato promessa de alienação. Os efeitos decorrentes do registo feito com base em declaração do proprietário (e consideraremos, de futuro, que proprietário equivale a titular do direito) são os mesmos do registo feito com base no contrato promessa de alienação e ambos redundam num registo que, por força de lei, é provisório por natureza. No entanto, a lei estabelece igualmente que o registo provisório feito com base em contrato promessa tem uma validade inicial de 6 meses, renovável por períodos adicionais de igual duração e até 1 ano após a data fixada pelas partes para a celebração da respectiva escritura pública (desde que as renovações se fundem em declaração das partes). Já o registo provisório de aquisição feito com base em declaração do proprietário subsume-se na regra geral - é válido por um período de apenas 6 meses, a não ser que seja convertido nos termos previstos na lei (ainda que nada obste a que se apresente novo registo provisório de aquisição em face da caducidade do anterior).
Como decorre da lógica do instituto, o registo provisório tem de ser convertido em definitivo, por forma a cristalizar e estabelecer, em termos registais, o facto que lhe serve de objecto. No caso do registo provisório de aquisição, a conversão é feita através da apresentação e submissão a registo do documento que titula a aquisição da propriedade (seja, por exemplo, a escritura pública de compra e venda ou a escritura de justificação notarial).
Questão mais controversa é a de saber quais os efeitos que decorrem de um registo provisório de aquisição, sendo certo que a Direcção-Geral dos Registos e Notariado (agora rebaptizada de Instituto dos Registos e Notariado) e o Supremo Tribunal de Justiça têm opiniões divergentes sobre esta matéria.
Em termos muito sumários, para o Instituto dos Registos e Notariado, o registo provisório de aquisição confere uma prioridade pré-tabular, cautelar, que permite ao beneficiário desse registo (o promitente comprador) opor a terceiros, desde a data de registo, o direito de adquirir o imóvel prometido adquirir no futuro. Os efeitos do registo estão condicionados à sua conversão em definitivo, sendo certo que os efeitos do registo definitivo retroagem à data do registo provisório. No fundo, para o referido Instituto, do registo provisório resulta a possibilidade de opor a terceiros a existência desse mesmo registo, acrescentando à declaração de alienação do proprietário ou ao contrato promessa sem eficácia real um efeito (ou eficácia) que transcende a mera e inerente eficácia obrigacional (ou “inter partes”) da declaração ou do contrato.
Por seu lado, o Supremo Tribunal de Justiça adoptou uma posição idêntica à do Instituto dos Registos e Notariado em acórdãos de 2000 e de 2001, mas veio a inflectir essa posição em 2002, quando negou que o registo provisório de aquisição pudesse, em certos casos, atribuir qualquer tipo de prioridade pré-tabular ou permitisse ao seu beneficiário opor a existência desse mesmo registo a determinados terceiros.
Na nossa opinião, o registo provisório de aquisição confere, efectivamente, uma prioridade pré-tabular ao seu beneficiário. Desde o momento em que o registo provisório de aquisição é lavrado e até ao momento em que a aquisição é definitivamente registada (através de averbamento à inscrição), o beneficiário do registo tem a certeza de que o seu registo goza da prioridade que lhe é conferida pelos princípios da prioridade e do trato sucessivo que orientam o sistema de registo predial português e que se sobreporá a quaisquer registos posteriores. Corolário disto mesmo é o estipulado no número 3 do artigo 6.º do CRP: uma vez convertido, o registo conserva a prioridade que tinha como provisório. Por outras palavras, a conversão do registo provisório em definitivo faz retroagir os efeitos do registo de aquisição definitiva à data de feitura do registo provisório, ou seja, o beneficiário do registo provisório será considerado, em termos registais, como proprietário do imóvel desde a data do registo provisório (por efeito de uma ficção jurídica criada pelo próprio registo predial).
Apesar de não conferir uma atribuição de eficácia real ao contrato promessa (porque não cria, a favor do beneficiário, qualquer direito real de aquisição), o registo provisório de aquisição confere ao seu beneficiário a protecção da sua oponibilidade a terceiros (obtida através da sua inscrição no registo), a qual tem valor inclusive em caso de alienação do imóvel a um terceiro. Em termos práticos, imagine-se que o proprietário do imóvel celebra contrato promessa de compra e venda com um promitente comprador e é inscrito um registo provisório de aquisição a favor deste. Posteriormente, o proprietário aliena o imóvel em questão a um terceiro e este consegue inscrever a aquisição do imóvel a seu favor no registo. Por existir um registo provisório anterior incompatível com o seu (o registo provisório de aquisição a favor do promitente comprador), a aquisição do imóvel pelo terceiro será lavrada provisória por natureza, nos termos do CRP. E o promitente comprador, enquanto o seu registo provisório se mantiver válido (ou seja, antes de que caduque, nos termos gerais), poderá requerer a anulação da alienação do imóvel ao terceiro e requerer a execução específica do contrato promessa que havia celebrado com o proprietário. Isto porque: (i) o terceiro não pode ser considerado como terceiro de boa fé (existia um registo provisório inscrito a favor do promitente comprador, que o terceiro conhecia ou tinha a obrigação de conhecer); e (ii) o registo provisório de aquisição do promitente comprador tem prioridade sobre o registo de aquisição do terceiro e, uma vez convertido em definitivo, verá os seus efeitos retroagir à data da feitura do registo provisório.
4. Conclusões
Da análise dos dois institutos (a eficácia real do contrato promessa e o registo provisório de aquisição), resultam algumas diferenças que são relevantes na hora de decidir por um ou por outro.
Desde logo, e como referido, o contrato promessa investido de eficácia real nos termos do CC tem por efeito principal a constituição de um direito real de aquisição a favor do promitente comprador. Este direito real reveste-se e goza de todas as características inerentes a qualquer outro direito real (a tendencial perpetuidade, a prevalência, a inerência, a tipicidade, a publicidade e, claro, a sequela). O promitente comprador de uma promessa com eficácia real goza do direito que maior protecção pode conferir aos seus interesses e às suas pretensões. Com base nisso, tem a faculdade de fazer valer o seu direito potestativo de aquisição em relação a qualquer terceiro e em qualquer circunstância. No fundo, e por efeito da sequela, o seu direito real de aquisição “segue” sempre o imóvel, independentemente das vicissitudes que tal imóvel possa sofrer, inclusivamente eventuais transmissões.
Já o beneficiário do registo provisório de aquisição continua a ter um direito de natureza obrigacional. Este direito e, no entanto, distinto do mero direito decorrente de um contrato promessa sem eficácia real e em que não existe registo provisório de aquisição, porque é oponível a terceiros e porque permite ao beneficiário gozar de uma prioridade pré-tabular nos termos já explicados. Mas que não chega a ser um direito real e que, por isso mesmo, não traz inerente qualquer faculdade de sequela.
Em termos práticos, isto significa que o titular do direito real de aquisição, no caso em que o proprietário aliena o imóvel (sobre o qual tem esse direito real de aquisição) a um terceiro posteriormente à celebração da promessa com eficácia real e à sua inscrição no registo, o titular do direito real poderá exigir, do proprietário o cumprimento da promessa de transmissão e, se for o caso, a execução específica da promessa com eficácia real e, simultaneamente, a restituição do imóvel. Ou seja, por efeito da sequela, o titular do direito real de aquisição pode exercer este seu direito, em qualquer momento, de forma potestativa (unilateral) directamente contra o terceiro adquirente (exactamente porque o seu direito real “seguiu” o imóvel até à esfera jurídica do terceiro).
No que toca ao beneficiário de um registo provisório de aquisição, atendendo às características do seu direito e às faculdades especiais que esse direito reveste com o registo provisório, em face da mesma situação (alienação do imóvel pelo proprietário a um terceiro adquirente de má fé), poderá exigir (contra o proprietário e o terceiro adquirente) a anulação desta alienação ao terceiro adquirente e, subsequentemente, exigir (face ao promitente vendedor ou proprietário) a execução específica do contrato promessa que havia celebrado com o proprietário. No entanto, apenas poderá fazer-se valer do seu registo provisório enquanto este se mantiver válido: dentro de 6 meses ou mais, mas sempre com um limite máximo de tempo, consoante o seu registo resulte de declaração do proprietário ou de contrato promessa de alienação. Verificada a caducidade desse registo provisório, o beneficiário não mais poderá fazê-lo valer contra terceiros e a alienação ao terceiro adquirente ficará perfeita e cristalizará os seus efeitos em termos de registo.
Para além do exposto, importa ainda frisar que um beneficiário de um registo provisório de aquisição, ao converter o registo em definitivo, verá os efeitos desse registo definitivo retroagirem à data do registo provisório, uma vez que o facto sujeito a registo é a aquisição propriamente dita e que as regras de registo predial ditam que a conversão do registo implica essa mesma retroactividade dos efeitos. No caso da promessa com eficácia real, tal não sucede. Com efeito, neste último caso, o que é objecto de registo é a própria promessa. E, após a outorga da respectiva escritura pública de compra e venda, o registo de aquisição não tem quaisquer efeitos retroactivos.
Por isso mesmo, para que o promitente comprador possa ter legitimidade para apresentar um subsequente registo provisório de hipoteca, terá de existir sempre um registo provisório de aquisição anterior (ou um registo definitivo de aquisição anterior) a seu favor. O que significa que o promitente comprador numa promessa com eficácia real, ainda que goze de um registo definitivo (que é, exactamente, o da promessa), terá sempre de recorrer ao expediente do registo provisório de aquisição para poder requerer o registo provisório de hipoteca.
Finalmente, importa ainda referir que, como já referido, a protecção conferida pelo registo provisório de aquisição é limitada no tempo e caduca se o registo não for convertido em definitivo. Já no caso da promessa com eficácia real, a protecção que é conferida por esta é tendencialmente ilimitada (apesar de limitada ao prazo de vigência do respectivo contrato promessa): estamos perante um registo definitivo, um direito real de aquisição que se impõe sobre e onera o imóvel (independentemente do número de transmissões que exista e de quem seja o seu proprietário).
Como vimos, apesar das semelhanças aparentes, os dois institutos têm diferenças fundamentais em termos de natureza e estrutura jurídicas. Importa, no momento da celebração de um contrato promessa de compra e venda de imóvel, ter presentes essas diferenças (e semelhanças), por forma a poder optar pelo instituto que maior protecção jurídica confira às pretensões de cada uma das partes envolvidas e que melhor sirva para prosseguir as intenções e vontades respectivas.