Sociedades de Investimento Imobiliário - Uma Antecâmara para os Real Estate Investment Trusts (Reit’s) em Portugal?

João Torroaes Valente.

2008 Vida Imobiliária n.º 127


1. INTRODUÇÃO

A Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM”), através do respectivo Departamento Internacional e de Política Regulatória, promoveu entre Março e finais de Abril de 2008 um processo de consulta pública relativamente a uma proposta de “Regime Jurídico das Sociedades de Investimento Mobiliário e das Sociedades de Investimento Imobiliário” ([1]) (“Anteprojecto”). Aguarda-se com expectativa a divulgação pela CMVM do respectivo “relatório de consulta” e do Anteprojecto revisto.

A possibilidade de estruturação de organismos de investimento colectivo sob forma societária já se encontra legalmente prevista, ao nível da gestão de activos mobiliários desde 2003, com a publicação do DL 252/2003, de 17.10 (Regime Jurídico dos Organismos de Investimento Colectivo – “RJOIC”), e ao nível da gestão de activos imobiliários desde 2005, com a publicação do DL 13/2005, de 7.1 (que alterou o Regime Jurídico dos Fundos de Investimento Imobiliários – “RJFII originariamente consagrado com a publicação do DL 60/2002, de 20.03 ([2])).

O mercado de gestão colectiva de activos tem, deste modo, convivido com um sistema incoerente, onde o legislador programaticamente autoriza a gestão colectiva de activos sob forma societária mas, abstendo-se de a regular e disciplinar, tem impedido a respectiva concretização e travado o desenvolvimento e competitividade do mercado nacional deste sector, em especial ao nível imobiliário, onde até hoje apenas é reconhecida a constituição de veículos de investimento sob a forma contratual, i.e. fundos de investimento imobiliário não personalizados e representados por sociedades gestoras de activos.

2. IDEIAS FORÇA

Para além da necessidade de corrigir o referido impasse legal, a criação das sociedades de investimento assenta ainda na necessidade de reduzir e evitar desequilíbrios concorrenciais significativos entre os operadores nacionais e internacionais, pois presentemente a indústria portuguesa de gestão de activos (em especial imobiliários) - que convive e compete cada vez mais com concorrentes internacionais - não pode, ainda, oferecer em Portugal aos seus investidores instrumentos, opções e produtos equivalentes aos oferecidos além fronteiras, já que em Portugal apenas são reconhecidos e regulados fundos de investimento sem personalidade jurídica.

O acolhimento de veículos de investimento de estrutura societária constitui, assim, um imperativo legal e económico para almejarmos alinhar o regime aplicável e o mercado nacional de gestão de activos com a realidade dos mercados internacionais mais dinâmicos ([3]) onde estes instrumentos já estão exaustivamente testados, maturados e disciplinados.

Para além da mais valia resultante das especiais características destes veículos (por comparação com as características dos FII actualmente existentes), com destaque para a respectiva personalidade jurídica, o estatuto de sócio dos seus participantes, com o inerente poder de escolha e decisão na sociedade, bem como a subjacente lógica de governo societário – aspectos que tentaremos sumariar infra -, importa referir que a familiarização dos investidores nacionais imobiliários com estruturas societárias de investimento e gestão de activos (dado as sociedades corresponderem aos veículos mais usados para efeitos de investimento imobiliário) ajudará de sobremaneira à respectiva consagração institucional num mercado tão conservador e tradicional como ainda é o nosso.

3.  REGIME DAS SII’S

3.1.     Personalidade jurídica

O legislador optou por regular as Sociedades de Investimento Imobiliário (“SII”) no RJFII, concebendo-as como um veículo paralelo aos Fundos de Investimento Imobiliário (“FII”), com as particularidades decorrentes da sua natureza societária.

A SII, à semelhança do que sucede noutros ordenamentos jurídicos que a consagram, constitui uma figura “híbrida” em razão do facto de ser construída com base em características clássicas dos fundos de investimento – p.e. no seu objecto exclusivo relacionado com a recolha de capitais dos accionistas/participantes para investimento imobiliário nos termos do RJFII e no respectivo plano de acção aí tipificado/limitações equivalentes às previstas para os FII’s –, e em características clássicas das sociedades anónimas – na respectiva estrutura base e modelo de governação, com as adaptações decorrentes das especificidades registadas face ao regime do Código das Sociedades Comerciais.

3.2.     Não separação/segregação patrimonial

Ao contrário do que sucede nos FII’s, não se verifica a separação de patrimónios na SII, dado que o património a investir é o  da própria SII correspondente ao respectivo capital próprio e capital alheio (caso opte pela alavancagem). O investimento do participante dá-se através da subscrição de acções da SII e já não de unidades de participação como sucede com os FII.

3.3.     Opção entre autogestão/heterogestão

Por outro lado, diferentemente dos FII, em que há uma incontornável separação entre a entidade gestora e os participantes (detentores das unidades de participação) exercendo aquela a gestão com base contratual ou fiduciária (i.e. com base no regulamento de gestão do FII que suporta o mandato de gestão da entidade gestora), nas SII essa separação de riscos não é necessária, podendo os accionistas ser simultaneamente investidores por via da detenção de acções e gestores dos activos da SII (autogestão) detendo posição nos órgãos de gestão e fiscalização da SII ou, em alternativa, designar os gestores a quem pretendam transferir essa responsabilidade (heterogestão).

Com a introdução das SII no mercado imobiliário o legislador resolverá  constrangimento/limitação que a estrutura do FII acarretava para  alguns investidores (mais preocupados em manter uma ligação directa aos seus activos), e que, em Portugal, não tinham alternativa em sede de organismos de investimento colectivo (“OIC”) na medida em que perdiam o controlo de gestão sobre o activo que nos FII estava na alçada exclusiva da sociedade gestora respectiva, não permitindo qualquer ingerência ou interferência ao nível da gestão pelo participante.

O estatuto de accionista dos participantes da SII permitirá, pois, uma mais marcada intervenção deste na vida dos OIC – muito elevada nas SII ditas autogeridas e mais sensível nas SII heterogeridas por comparação com os FII, admitindo maior interferência por parte dos accionistas da SII no mandato de gestão conferido ao terceiro.

Este facto será, certamente, um impulsionador na indústria dos OIC imobiliários, eventualmente provocando uma corrida natural a este veículo por parte de investidores que, antes, optaram por FII fechados de subscrição particular e que, agora, têm a fórmula correcta para tomar, finalmente e directamente, as rédeas do seu investimento. Caberá evidentemente às SGFII existentes provarem o seu valor acrescentado em termos de gestão e investimento imobiliário para justificar a manutenção do respectivo mandato de gestão conferido pelos investidores.

3.4.  SICAVI e SICAFI

As SII poderão assumir uma de duas formas: (i) a forma de sociedade anónima de capital variável (SICAVI) e (ii) a forma de sociedade anónima de capital fixo (SICAFI). Às primeiras o Anteprojecto aplica, com as necessárias adaptações, o previsto no RJFII para os FII abertos, e às segundas o previsto no RJFII para os FII fechados.

A necessária compatibilização entre os princípios clássicos vertidos no Código das Sociedades Comerciais, designadamente o princípio da intangibilidade do capital social, e a regra introduzida pelo Anteprojecto da variabilidade do capital social nas SICAVI, obrigará à reequação jurídica e contabilística dos conceitos de capital social e de património nas SII, os quais serão de sobremaneira diferentes dos aplicáveis às sociedades ditas “clássicas” (i.e. de capital fixo), levantando inúmeras dúvidas ao nível da contabilização e avaliação dos activos em termos contabilísticos e jurídicos.

Em virtude deste facto, o Anteprojecto determina que, para além do RJFII, o Código das Sociedades Comerciais deva também ser aplicado às SII com as adaptações necessárias (a regulamentar ad hoc pela CMVM ou a complementar ainda em sede de revisão do Anteprojecto pela CMVM e pelo Ministério das Finanças), designadamente no que respeita à composição, variação e intangibilidade do capital social e amortização de acções, constituição de reservas, limitação de distribuição de resultados aos accionistas, regras relativas à elaboração e prestação de constas e regime de fusão e cisão.

3.5.  Capital social das SII

O capital social mínimo das SII é igual ao previsto para os FII, ou seja cinco milhões de euros, devendo ser subscrito nos doze meses posteriores à autorização de constituição da mesma pela CMVM.

O capital social das SICAVI corresponde, em cada momento, ao valor líquido global do seu património. Nas SICAFI, o capital social é definido no momento da constituição da SII, sofrendo apenas as alterações decorrentes das deliberações de aumento ou redução do capital social à semelhança do que sucede com os FII fechados.

Por outro lado, o Anteprojecto expressamente prevê que as SICAFI deverão adoptar as medidas necessárias a que o valor líquido global do seu património não desça a valores inferiores ao seu capital social.

Em caso de autogestão dos activos pela SII, i.e. caso esta não mandate uma sociedade gestora terceira para efectuar a respectiva gestão, o regime de fundos próprios das sociedades gestoras de fundos de investimento mobiliário aplica-se-lhe com as devidas adaptações.

3.6. Regime fiscal

Ainda não foi dado a conhecer no Anteprojecto o regime fiscal pretendido aplicar às SII, aguardando-se com expectativa a respectiva divulgação.

De todo o modo, conforme já antecipado no preâmbulo do Anteprojecto pelo legislador, o novo regime das SII reclama que se assegure, sem margem para dúvidas, a neutralidade fiscal entre ambos os géneros de OIC existentes, os personalizados (SII) e os não personalizados (FII), sob pena de introduzir inadmissíveis distorções na disciplina dos OIC.

Sem prejuízo do referido, este será - sem dúvida - o momento ideal para o legislador reformar o regime fiscal aplicável à globalidade dos OIC imobiliários existentes, indo ao encontro das expectativas e necessidades já transmitidas pela indústria ao Governo.

4. CONCLUSÃO

A profusão dos FII fechados de subscrição particular no mercado imobiliário nacional – os quais constituem de longe os OIC com maior peso em Portugal superando em números e valores de activos sob gestão os OICVM – permite supor que a introdução das SII irá claramente ao encontro das expectativas e necessidades dos investidores nacionais e estrangeiros com investimentos imobiliários já consumados ou ainda em pipeline para o nosso país.

As SII representam, em termos de mercado, a capacidade de oferecer aos investidores dos FII Fechados de Subscrição Particular algo muito ansiado até agora: a possibilidade de exercer o controlo directo sobre os seus investimentos e activos sob gestão e, com isso,  dispor de uma alternativa à gestão fiduciária dos FII actualmente desenvolvida pelas SGFII (em especial os FII fechados por subscrição particular).

A institucionalização das SII é encarada pela CMVM e pelos operadores de mercado imobiliário como o passo necessário para uma maior competitividade dos veículos nacionais de investimento imobiliário e, em especial, para a introdução em Portugal dos tão ansiados Real Estate Investment Trusts (REIT’s), i.e. veículos cujas participações sociais podem ser admitidas à negociação em mercado regulamentado e que beneficiam de um regime de total transparência fiscal – os quais têm conhecido grande difusão em mercados próximos do nosso.

O atraso que a aprovação deste projecto legislativo tem vindo a sofrer em termos regulatórios deveu-se, em grande medida, ao estudo de direito comparado que a entidade reguladora tem vindo a levar a cabo com vista aproveitar o melhor de cada jurisdição em matéria de SII (em particular, no que tange aos REIT’s), bem como a corrigir o que, em cada uma, se detectou já de errado e problemático.

Por fim, importa lembrar que qualquer menu de veículos de investimento que se pretenda oferecer ao mercado, e ao investidor imobiliário em particular, deverá ser criado e viver, sempre, à luz de medidas tributárias adequadas de forma a assegurar que a eficiência e competitividade regulatória é acompanhada da necessária eficiência e competitividade fiscal, razão pela qual aguardamos com expectativa a divulgação do pretendido nesta sede, esperando que o legislador aproveite esta oportunidade para reformar globalmente o regime fiscal aplicáveis a todos os OIC imobiliários (não personalizados e personalizados) tornando-o mais competitivo face ao aplicável noutras jurisdições.


[1] Corresponde ao processo de consulta n.º 6/2008. Em 2002 foi igualmente colocado em consulta pública um anteprojecto de regulamento da CMVM sobre sociedades de investimento mobiliário (apenas) de capital fixo e variável, o qual nunca chegou a ter qualquer seguimento.

[2] Entretanto alterado pelo DL 252/2003, de 17.10, e republicado pelo DL 13/2005, de 7.1

[3] A título exemplificativo, admitem sociedades de investimento imobiliário os seguintes Estados: França, Reino Unido, Espanha, Luxemburgo, Finlândia, Estados Unidos e Irlanda.

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