O Contrato de Utilização de Espaço em Centro de Escritórios e o Regime do Arrendamento Urbano

Vasco Caetano de Faria.

2009 Vida Imobiliária n.º 139


O mercado imobiliário de escritórios tem assistido nos últimos anos ao desenvolvimento e generalização de novos conceitos de cedência de espaço para instalação de escritórios de empresas ou de profissionais liberais.

A par da comum cedência simples de espaço para instalação de escritório, o comércio jurídico gerou o desenvolvimento de novos modelos contratuais em que o espaço é cedido em conjunto com uma multiplicidade de serviços associados, que vão desde a disponibilização de infra-estruturas de telecomunicações, serviços de manutenção, limpeza e segurança, equipamento informático, gestão de correspondência, salas de reuniões, podendo até incluir a prestação de serviços de secretariado. 

A chegada desta nova realidade lança o debate sobre o enquadramento, pela ordem jurídica, destas novas fórmulas de contratação de espaços. Estaremos perante contratos de arrendamento subsumíveis ao regime do arrendamento urbano (aplicável a todos os contratos onde uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de um imóvel, mediante retribuição)? Ou será esta uma realidade mais complexa e de diferente natureza que não se poderá reconduzir àquele regime, constituindo antes um contrato atípico, cujo o conteúdo pode ser livremente determinado pelas partes?

O tema que agora lançamos, sobre a aplicabilidade do regime do arrendamento urbano à nova realidade dos contratos de utilização de espaços em centros de escritório (com uma multiplicidade de serviços associados), convida-nos a revisitar alguns dos argumentos fundamentais, já desenvolvidos pela doutrina e jurisprudência portuguesa dominantes, relativos à aplicabilidade do regime do arrendamento urbano aos contratos de utilização de lojas em centro comercial.

Nestes contratos, observa-se a existência de inúmeras cláusulas estranhas a um simples arrendamento, designadamente, as prestações de serviços a efectuar pela entidade gestora do centro comercial em termos de segurança e manutenção das estruturas de apoio do centro; a obrigação de investimento em publicidade do centro comercial; a existência de uma remuneração fixa e variável (em função das vendas) que fazem com que a entidade gestora do centro comercial partilhe o risco da actividade do lojista; ou o dever do lojista explorar a loja, de forma continuada, dentro dos padrões e horários definidos pela entidade gestora do centro comercial.

Acresce referir, a integração destes contratos no chamado “tenant mix” (plano de distribuição dos vários tipos de lojas no conjunto do centro comercial) rompendo, em larga medida, com o conceito de utilização individual de um espaço, elemento típico de um contrato de arrendamento, o que confere a estes contratos um elemento de integração empresarial e associação ao risco do sucesso do conjunto do centro comercial.

Em linha com o que descrevemos, a doutrina e jurisprudência dominantes em Portugal defendem que um contrato celebrado nestes termos não pode ser reconduzido ao esquema clássico tipificado na lei para o contrato de arrendamento, constituindo, sim, um contrato inominado ou atípico, livremente regulado pelas partes.

Cremos que existe um paralelo entre a doutrina da não aplicação do regime do arrendamento urbano aos contratos de utilização de loja em centro comercial e a nova realidade dos contratos em centro de escritórios que pretendemos aqui tratar. Não por estarmos perante situações idênticas ou de idêntico conteúdo contratual, mas principalmente porque estes contratos espelham igualmente uma realidade que supera, em larga medida, a função económico-social  e tipo contratual de um simples e comum arrendamento.

Na verdade, quando o contrato de utilização de espaço em centro de escritórios integra um conjunto de obrigações para o proprietário, que vão muito além da simples cedência de utilização de um espaço num imóvel, contendo uma multiplicidade de serviços essenciais associados, estamos perante um contrato que não se poderá reconduzir ao regime contratual tipificado no arrendamento urbano.

A causa e a função económico-social de um contrato de utilização de espaço em centro de escritórios, com a multiplicidade de serviços como os descritos supra, afasta-se das causas que tipificam os contratos de arrendamento ou mesmo até de uma pretensa aplicação combinada das regras do regime do arrendamento e da prestação de serviços.

 

A realidade contratual aqui traçada integra um conjunto complexo de direitos e obrigações, em que a obrigação de disponibilização do imóvel por parte do proprietário não se pode considerar como principal ou numa relação de prevalência em confronto com as outras obrigações de prestar que integram o contrato. 

 

De facto, neste tipo de contratos, verifica-se uma verdadeira indissociabilidade entre a multiplicidade de serviços a prestar e a cedência do imóvel, que nos leva a considerar estarmos perante um contrato unitário e complexo, um contrato atípico que supera os modelos contratuais previstos na lei e que deverá assim ser livremente regulado pelas partes.

Apesar de, actualmente, o regime do arrendamento urbano conceder uma grande margem de liberdade na definição do conteúdo dos contratos de arrendamento para fins não habitacionais, ainda assim para os proprietários dos imóveis, onde funcionam centros de escritórios, a liberdade de estipular o conteúdo do contrato e a não sujeição do mesmo ao regime do arrendamento urbano podem traduzir-se em vantagens que não são de todo despiciendas.

Com efeito, a não sujeição ao regime do arrendamento urbano deste novo tipo de contratos poderá significar para o proprietário, entre outras vantagens, a não aplicação do direito de preferência do arrendatário na venda do imóvel; a inexistência do direito de trespasse do arrendatário; a impenhorabilidade do direito de utilização do imóvel nestes contratos em contraste com a possibilidade de penhora do direito do arrendatário, em sede de um eventual processo de execução de terceiro contra o arrendatário; a não aplicação da tramitação prevista para a acção de despejo para resolver o contrato e proceder à desocupação do imóvel (apesar de, neste caso, o proprietário continuar a ter de recorrer aos meios judiciais para proceder à desocupação forçada do imóvel).

Por outro lado, os proprietários dos imóveis poderão ainda, neste tipo de contratos, ter maior facilidade na recuperação do IVA pago na construção do imóvel ou na sua aquisição, evitando assim o cumprimento das regras rígidas relativas à renúncia à isenção do IVA, uma vez que os contratos de arrendamento são isentos deste imposto.

A título de exemplo, o proprietário tem nestes contratos a flexibilidade de que não dispõe quando celebra um contrato de arrendamento (que se pretende sujeitar a IVA), uma vez que, entre outros requisitos, só os contratos que tenham por objecto uma fracção autónoma completa ou o edifício no seu todo podem ser objecto de renúncia à isenção de IVA.

Este facto coloca problemas de gestão na recuperação do IVA pago na construção ou aquisição do imóvel aos proprietários que pretendem fazer arrendamentos parciais de fracções autónomas ou de edifícios, limitando assim os arrendamentos a realizar no imóvel.

A administração fiscal pronunciou-se recentemente e de forma favorável à sujeição ao regime de IVA desta nova realidade contratual, em sede de emissão de informação vinculativa relativa a casos concretos de contratos de utilização de espaço em centros de escritórios e parques empresariais.

Segundo as referidas informações vinculativas a que tivemos acesso, a administração fiscal não considera esta nova realidade contratual subsumível a um contrato de arrendamento, em virtude da existência de uma prestação de serviços complexa que não pode ser dissociada da simples cedência do imóvel, defendendo deste modo a sua sujeição ao regime de IVA.

As vantagens que referimos supra, para os proprietários dos imóveis, da não aplicação do regime do arrendamento urbano, constituem o reverso da medalha para os titulares do direito de utilização nestes contratos, que vêem assim suprimidos, designadamente, o direito de trespasse, o direito de preferência na venda do imóvel ou a aplicação da acção de despejo (assumidamente mais proteccionista dos interesses do arrendatário).

A não sujeição ao regime do arrendamento urbano poderá significar ainda, para os referidos titulares do direito a utilizar o imóvel neste tipo de contratos, a exposição a alguns riscos, sendo de destacar, em caso de venda do imóvel, a não transmissão automática dos direitos e obrigações que resultam do contrato de utilização de espaço para o novo proprietário do imóvel.

Na verdade, a regra de que os contratos só vinculam as respectivas partes contratantes tem uma excepção expressa no regime do arrendamento urbano, que prevê a transmissão automática dos direitos e obrigações emergentes de um contrato de arrendamento para o adquirente do imóvel objecto desse contrato, protegendo assim o direito do arrendatário.

Com efeito, para que novo proprietário do imóvel suceda na posição contratual do anterior proprietário, num contrato de utilização de espaço em centro de escritórios como o descrito supra, será sempre necessário que seja acordada ad hoc uma cessão de posição contratual nos termos gerais do direito.

Feito um breve retrato das principais questões emergentes dos contratos de utilização de espaço em centro de escritórios, veremos como a doutrina e os tribunais portugueses acolhem esta nova realidade contratual que, cada vez mais, se desenvolve e generaliza no mercado imobiliário ao lado do modelo clássico do contrato de arrendamento. 

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