A Directiva da Liberalização dos Serviços Portuários: os argumentos e as perspectivas

João Anacoreta Correia.

02/03/2006 Jornal de Negócios


O Parlamento Europeu rejeitou pela segunda vez a proposta de Directiva comunitária apresentada pela Comissão relativa à liberalização dos serviços portuários (e por uma maioria bem mais significativa que a anterior: 512 votos contra, 25 abstenções e apenas 120 votos favoráveis). A primeira proposta da Comissão foi apresentada em 2001, no âmbito da comunicação "Reforçar a qualidade do serviço nos portos marítimos, um elemento essencial para o sistema de transportes na Europa” (conhecida por Pacote Portuário). Desde então a liberalização dos serviços portuários tem sido alvo de intensa polémica, movimentando-se num terreno movediço e no qual se debatem inúmeros interesses de difícil compatibilização.

Mas, afinal, quais são as linhas gerais das propostas da Comissão?

Na exposição dos motivos justificativos, a proposta de Directiva salientava a importância do transporte marítimo de curta distância e das auto-estradas marítimas, como a forma mais eficaz de operar a redução do congestionamento da rede rodoviária e de absorver parte significativa do intenso crescimento do tráfego de mercadorias. Tudo a ter como consequência um maior movimento portuário. A Directiva justificava-se assim, na visão da Comissão, com a cada vez maior intensidade da procura dos serviços portuários, e com a consequente necessidade de resposta com maior eficácia e eficiência.

Ao mesmo tempo, pretendia-se garantir que o desempenho destas actividades se realizasse no quadro de uma política comum de transparência nos auxílios estatais e em condições equitativas de mercado. O objectivo primordial era então o de “fazer respeitar as liberdades fundamentais garantidas pelo Tratado CE e as regras de concorrência por ele estabelecidas no interior dos portos marítimos, bem como entre estes, e por conseguinte aumentar assim a sua eficácia.”

A Directiva actuaria, deste modo, em dois planos complementares e interligados: o interportuário e o intraportuário. O primeiro prende-se com a relação entre os diversos portos europeus, procurando estipular critérios comuns e uniformizadores que fortalecessem as regras da concorrência e a transparência nos auxílios estatais, ao passo que o segundo visava a abertura à concorrência dos serviços prestados no interior dos portos.

Do ponto de vista da concorrência interportuária, não existe de facto um quadro comunitário aplicável a este sector, caracterizado pela heterogeneidade dos serviços portuários, pela diversidade dos portos, pela complexidade da normativa nacional de cada Estado e pelo facto de 20 dos 25 Estados Membros disporem de portos comerciais. Pretendendo ultrapassar estas questões, a proposta apenas seria vinculativa para os portos marítimos de dimensão internacional (categoria A), conforme definição constante da Decisão n.º 1692/96/CE, alterada pela Decisão n.º 1346/2001/CE, relativa à rede transeuropeia dos transportes, sendo facultativa para os demais. Os portos assim considerados são aqueles cujo volume anual total de tráfego é igual ou superior a 1,5 milhões de toneladas de frete ou a 200.000 passageiros e que, salvo impossibilidade, estão conectados com elementos terrestres da rede transeuropeia de transportes e desempenham um papel primordial no transporte marítimo internacional. Em Portugal são os seguintes: Leixões, Aveiro, Lisboa, Setúbal, Sines, Madeira e Açores.

No que toca à concorrência intraportuária, a novidade da proposta era a de permitir a movimentação de carga e os serviços de passageiros em regime de autoprestação, permitindo-se assim a sua realização pelo pessoal de terra do autoprestador. Deste modo, qualquer utilizador de um porto poderia gerir as suas próprias mercadorias, prestando serviços de pilotagem, ancoragem, reboque, assistência, serviços de embarque e desembarque de passageiros, sendo possível aos armadores utilizarem as suas próprias equipas para carregar e descarregar os navios.

Ora, este regime de autoprestação constituiu o principal motivo de discórdia e de agitação social, receando-se, por um lado, o recurso a mão de obra barata e a adopção de trabalho precário, e por outro, tripulações dos navios e a mão-de-obra contratada sem aptidões suficientes e indispensáveis para o conveniente desempenho de tarefas de dificuldade e perigosidade assinaláveis (como é o caso das actividades asseguradas actualmente pelos estivadores) com claros riscos ambientais e de segurança. Foi também objecto de crítica a necessidade de regulamentação da utilização de cais comuns, gruas e carregamento de comboios e o posterior controlo do cumprimento destas obrigações por parte da autoridade competente, uma vez que tal se afiguraria de difícil (senão mesmo impossível) concretização, originando custos significativos e, de acordo com alguns, potenciando o caos na utilização destes recursos.

A Directiva procurava responder a algumas destas preocupações, nomeadamente prevendo a obrigatoriedade de os prestadores e de os autoprestadores exercerem a actividade a coberto de uma autorização (o que, segundo alguns críticos, levaria a um excesso de burocracia e a custos significativos com a necessidade do controlo, a todo o tempo, do cumprimento dos requisitos de que depende a autorização dada pela autoridade competente). Também a pilotagem em regime de autoprestação, estaria condicionada ao cumprimento de determinados requisitos particularmente estritos, salientando-se o cariz técnico da actividade, as preocupações com a segurança marítima e as obrigações de serviço público.

Porém, tais argumentos não foram suficientes para convencer os membros do Parlamento Europeu, tendo a proposta sido rejeitada mesmo antes de se proceder a qualquer emenda ou alteração. Para além das críticas referidas e das reacções impetuosas que as mesmas causaram, somaram-se ainda outras como a consideração de que a proposta se trata de uma cópia da anterior, sujeita a uma mera operação de cosmética, de que não houve suficiente debate entre todos os interessados, ou mesmo de que é desnecessária, criando mais problemas do que aqueles que pretende solucionar.

Chegados a este ponto, terá o comissário dos Transportes Jacques Barrot juntamente com os restantes membros da Comissão de decidir se pretendem definitivamente “enterrar” a Directiva ou se pretendem insistir na sua tramitação. De qualquer das formas, atendendo a toda a burocracia e morosidade no processo de legislação da União Europeia, a adopção de legislação relativa a esta matéria não estará certamente para breve.

Haverá agora que aguardar a apresentação da revisão do Livro Branco dos Transportes, prevista para o próximo mês de Abril. É de prever que aí se inclua a liberalização dos serviços portuários e as regras de transparência relativas aos auxílios estatais, às taxas aplicáveis e à gestão portuária.

O sector portuário assume já um certo cariz excepcional em relação aos demais sectores de actividade, na medida em que ainda não existe um quadro comum europeu. E apesar de a proposta de Directiva ter sido rejeitada por uma larga maioria, não parece possível que a Comissão Europeia abandone a ideia de liberalizar, ainda que de outra forma e noutros moldes, a prestação dos serviços portuários e, muito menos, a necessária transparência nos auxílios estatais e criação de um mercado verdadeiramente concorrencial, com regras comuns e bem definidas.

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