A clemência da Autoridade

Joaquim Caimoto Duarte.

13/09/2006 Diário Económico


Foi publicada no passado dia 25 de Agosto a Lei n.º 39/2006, que estabelece o regime jurídico da dispensa e da atenuação especial da coima em processos de contra-ordenação instaurados pela Autoridade da Concorrência (AdC).  

Este diploma insere-se no programa comunitário de clemência na luta anti-cartel, de acordo com o qual a Comissão Europeia e a maioria das autoridades nacionais de concorrência dos Estados-Membros estabeleceram regimes de isenção ou de atenuação das sanções para as empresas que denunciem e forneçam provas da existência de acordos restritivos ou práticas concertadas proibidas. 

Para este efeito, o momento em que as empresas se apresentam para colaborar com a AdC é fulcral: à primeira empresa que, verificadas determinadas condições, denunciar a existência da infracção, poderá ser concedida a dispensa da coima (isenção total); se a AdC já tiver iniciado o processo (sem ter havido nota de ilicitude), poderá ainda beneficiar de uma atenuação especial de, no mínimo, 50% da coima que lhe seria aplicável; já a segunda empresa que se apresente poderá beneficiar de uma atenuação até ao limite máximo de 50%. 

Note-se ainda a possibilidade de uma atenuação adicional se a empresa colaborante for a primeira a denunciar a existência de um outro acordo ou prática proibida, bem como a possibilidade dos titulares dos órgãos de administração poderem eles próprios beneficiar do regime de clemência referido (uma vez que estes, em certas circunstâncias, podem também ser sancionados de acordo com a Lei da Concorrência).

A Lei 39/2006 confere, indubitavelmente, um cunho adicional de modernidade e sofisticação (necessários) à política nacional de concorrência, o qual, em grande medida, se fica a dever ao impulso legislativo da própria AdC, entidade a que caberá a regulamentação processual do diploma referido. 

Contudo, subsistem ainda alguns pontos dignos de reparo. 

Nos casos da atenuação especial da coima, poder-se-á argumentar que as vantagens para os denunciantes poderão não ser completamente evidentes uma vez que a AdC dispõe de uma grande margem de apreciação na determinação da medida da coima (base), concretamente aplicável. Sendo certo que a própria Lei da Concorrência nos indica quais os critérios de determinação da medida da coima (atenuantes e agravantes), estes poderão ser considerados genéricos, nomeadamente, por comparação com as desenvolvidas linhas orientadoras da Comissão relativas à determinação das coimas por esta aplicadas. 

Além do mais, da redacção do novo diploma parece resultar a aplicabilidade do regime da clemência português a todos os acordos restritivos da concorrência que não somente “cartéis” (i.e., genericamente, acordos horizontais, entre concorrentes, sobre preços e repartição/afectação de mercados). Este reparo surge-nos da confrontação com a prática da Comissão no que concerne ao estatuto da clemência, a qual se cinge às práticas de cartel, encontrando-se a delimitação expressa para este tipo de acordos restritivos na Comunicação da Comissão relativa à imunidade em matéria de coimas e à redução do seu montante nos processos relativos a cartéis. Perante um acordo puramente vertical (v.g., entre fornecedores e distribuidores) que se afigure como restritivo da concorrência será, face ao exposto, aplicável o disposto na Lei 39/2006 a uma empresa que solicite a referida dispensa ou atenuação de coima? 

Por último, parece subsistir uma importante questão potencialmente limitadora da denúncia por parte das empresas infractoras junto da AdC, não colmatada pela Lei 39/2006. Tal prende-se com a susceptibilidade de terceiros afectados demandarem as empresas denunciantes, em sede de acções de indemnização cível, justamente pelos prejuízos causados em virtude da violação das regras de concorrência - facto que é tido em conta pela Comissão Europeia no seu programa de clemência. Parece-nos que, tendo em conta a ausência de medidas protectoras quanto à informação prestada pelas empresas denunciantes no processo de contra-ordenação da AdC, o balanço que as empresas infractoras necessariamente realizarão sobre a utilidade em colaborar com a AdC poderá ser afectado face à contingência de uma acção de indemnização nos tribunais comuns por parte de terceiros lesados.