Notários privativos dos municípios
2010 Vida Imobiliaria, n.º 150
A figura dos notários privativos dos municípios acompanha os diplomas relacionados com a organização administrativa, desde, pelo menos, 31 de Dezembro de 1940, data da publicação do Decreto-Lei n.º 31.095 e, com ele, do Código Administrativo, diploma que, a partir de 1941, vem sendo sucessivamente alterado, aditado e (parcialmente) revogado. Assim, já contemplava o artigo 137.º do Código Administrativo, no seu n.º 12, que competia ao chefe de secretaria “exercer as funções de notário em todos os actos e contratos em que a câmara for outorgante”.
Nos dias de hoje, após sucessivas alterações legislativas, o quadro de competências e o regime jurídico de funcionamento dos órgãos dos municípios e das freguesias resulta do disposto na Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro, a qual, mantendo a figura do notário privativo, expressamente prevê, na alínea b) do n.º 2 do artigo 68.º – na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 5-A/2002, de 11 de Janeiro –, que compete ao presidente da câmara municipal “designar o funcionário que, nos termos da lei, serve de notário privativo do município para lavrar os actos notariais expressamente previstos pelo Código do Notariado”, nos termos do qual (cfr. artigo 3.º, n.º 1, alínea b)), por seu turno, resulta – ainda hoje – que desempenham funções notariais, a título excepcional e como órgãos especiais, os notários privativos das câmaras municipais.
Perante tal panorama legislativo, poder-se-ia concluir que seria pacífico o entendimento de que os municípios podem dispor de notários privativos, os quais seriam competentes para o exercício de funções notariais.
Contudo, a Lei n.º 12-A/2008, de 27 de Fevereiro, que estabelece o regime de vinculação, de carreiras e de remunerações dos trabalhadores que exercem funções públicas, procedeu à revogação (expressa) do anterior regime, plasmado no Decreto-Lei n.º 247/87, de 17 de Junho, nos termos do qual (cfr. artigo 58.º) se previa expressamente que as funções notariais poderiam ser exercidas por assessor autárquico e, na sua falta e mediante deliberação do órgão executivo, pelos titulares de cargos de direcção ou chefia de serviços de apoio instrumental, sem prejuízo do recurso aos notários públicos. Acontece que, na sequência da mencionada revogação, não existe no ordenamento jurídico em vigor norma semelhante à prevista no Decreto-Lei n.º 24/87, de 17 de Junho, ou outra que se debruce expressamente sobre o exercício de funções notariais por funcionários municipais.
Perante tal situação, têm vindo a ser publicitadas duas teses distintas sobre a legitimidade dos actos praticados pelos notarios privativos dos municípios.
A primeira tese publicitada defende que a Lei n.º 12-A/2008, de 27 de Fevereiro, criou um vazio legal por inexistência de norma legal que permita a designação de funcionários municipais para o exercício de funções notariais e, bem assim, as condições de exercício de tais funções. O argumento central desta tese assenta no facto de que a Lei n.º 12-A/2008, de 27 de Fevereiro, para além da revogação expressa do artigo 58.º do Decreto-Lei n.º 247/87, de 17 de Junho, teria determinado, também e na sequência das disposições contantes do Estatuto do Notariado (cfr. artigos 15.º e 117.º do aprovado pelo Decreto-Lei n.º 26/2004, de 4 de Fevereiro, segundo os quais as funções notariais são exercidas em regime de exclusividade, sendo incompatíveis com quaisquer outras funções remuneradas, publicas ou privadas, encontrando-se os notários privativos e cartórios com competência especializada sujeitos a diploma próprio, pendente de publicação), a revogação imlpícita (não expressa) do artigo 68.º, n.º 2, alínea b), da Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro, e do artigo 3.º, n.º 1, alínea b), do Código do Notariado.
A defesa desta tese implicaria, a partir de 1 de Janeiro de 2009 (data de entrada em vigor da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de Fevereiro) e decorrente do vazio legislativo causado pela revogação do Decreto-Lei n.º 247/87, de 17 de Junho, que todos os actos notariais praticados por funcionários municipais padecem de vício e sejam desprovidos de fé pública. Esta consequência, revelada em sede de garantia dos direitos de terceiros e valor probatório dos documentos exarados, só poderia ser resolvida por recurso ao n.º 2 do artigo 369.º do Código Civil. Neste sentido, os actos notariais que tenham sido praticados pelos notários privativos dos municípios só poderão considerar-se válidos e eficazes perante terceiros se, ainda que desprovido da necessária legitimação para o cargo, o agente exerça publicamente aquelas funções e que os intervenientes nos actos, no momento da sua feitura, desconhecessem a falta de qualidade do agente e a sua incompetência. Nos demais casos, à contrario sensu, os documentos estarão desprovidos de autenticidade e fé pública e, consequentemente não terão valor provatório, nomeadamente para efeitos de registo.
Os seguidores da segunda tese, por seu turno, defendem que a norma contida no n.º 1 do artigo 58.º do Decreto-Lei n.º 247/87, de 17 de Junho, não reveste a natureza de norma de atribuição de competência, quer para a designação dos funcionários municipais, quer para o exercício de funções notariais. Por outro lado, a Lei n.º 12-A/2008, de 27 de Fevereiro, limitou-se a revogar – expressamente – o Decreto-Lei n.º 247/87, de 17 de Junho, e a definir o novo regime de vínculos, carreiras e remunerações dos trabalhadores que exercem funções públicas, ao qual as matérias relativas à competência para o exercício de funções notariais por funcionários municipais são, naturalmente, estranhas.
Neste sentido, defendem não ser sustentável a defesa da revogação implícita das normas contidas nos diplomas que, em sede própria, regulam as matérias relativas à competência e exercício das funções notarias por funcionários municipais pela simples razão de que não cabe à Lei n.º 12-A/2008, de 27 de Fevereiro, regular essas mesmas matérias. Com efeito, permanecem em vigor a Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro, a qual atribui ao presidente da câmara municipal a competência para a prática do acto de designação do funcionário que assumirá as funções de notário privativo, e o Código do Notariado, o qual, ao definir os notários privativos das câmaras municipais como órgãos especiais da função notarial, reveste a natureza de norma de atribuição da competência para o exercício de funções notariais.
Considerando que a questão da subsistência, ou não, da figura dos notários privativos dos municípios ao abrigo da normas actualmente vigentes, suscita questões pertinentes em sede de competência e legitimidade para a prática de actos (que se pretendem providos de autenticidade e fé pública) e garantias dos direitos de terceiros, torna-se urgente a definição clara e vinculativa, por parte das diversas autoridades competentes, da tese a seguir.