Trespasse - Direito ao Arrendamento Vs Direito de Propriedade

Filipe Romão, Cláudia Reis Duarte.

2006 Vida Imobiliária n.º 106


O Decreto-Lei 287/2003, de 12 de Novembro, que implementou a reforma dos impostos sobre o património, aprovando os códigos do IMI e do IMT, introduziu alterações ao Código do Imposto do Selo e à respectiva tabela geral, aditando-se à mesma tabela a verba 27, que sujeita a Imposto do Selo (IS), à taxa de 5%, os trespasses de estabelecimento comercial, industrial ou agrícola, ao mesmo tempo que inclui as subconcessões e trespasses de concessões feitas pelo Estado ou entidades públicas pela exploração de empresas ou serviços, que eram até esta data tributadas em Imposto Municipal de SISA (art.º 2º §1º 1º do CIMSISSD).

A questão central de que nos ocuparemos é a de saber se a transmissão onerosa de um estabelecimento comercial em simultâneo com a transmissão do direito de propriedade do imóvel em que o mesmo estabelecimento está instalado configura, para efeitos de tributação em IS, um trespasse, e a ser assim, qual é a sua base tributável.

Desde logo, e antes de quaisquer outras considerações, importa referir que não existe, no ordenamento juridico-fiscal português, uma definição de trespasse.

Por este motivo, o que seja o trespasse, para efeitos de aplicação da lei fiscal, deve ser determinado de acordo com o sentido que tal termo tem na lei civil, uma vez que o termo é próprio desse ramo do direito (cf. art.º 11º da LGT).

Contudo, o nosso direito positivo não tem, nem sequer na lei civil, uma definição legal de trespasse. Uma das referências expressas a esta figura é feita art.º 1112º do Código Civil (que corresponde, com algumas alterações, ao anterior art.º 115º do Regime do Arrendamento Urbano) que se refere ao trespasse no âmbito da transmissão do direito ao arrendamento. Embora esta disposição não defina, pela positiva, o conceito de trespasse, este não deixa de resultar de uma interpretação “a contrario” do seu n.º 2 como a transmissão por acto entre vivos da posição de arrendatário, acompanhada da transferência das instalações, utensílios, mercadorias ou outros elementos que integram o estabelecimento, bem como a manutenção do exercício, no imóvel cujo direito de arrendamento é transmitido, do mesmo ramo de comércio ou indústria.

Não restam pois dúvidas quanto à tributação em IS da transmissão de um estabelecimento, enquanto unidade económica independente, no âmbito da transmissão do direito ao arrendamento.

Não obstante, e face àquele conceito de trespasse, coloca-se a questão de saber se a transmissão onerosa e definitiva de um estabelecimento comercial em conjunto com o direito de propriedade sobre o imóvel onde tal estabelecimento se encontra instalado configura (ou não) um trespasse para efeitos de sujeição a IS e se em caso afirmativo o imóvel se deverá considerar como incluído no valor do trespasse para efeitos de IS.

Parte da doutrina entende que assim não é, defendendo que a transmissão da posição de arrendatário é um requisito essencial do conceito de trespasse, e que, não se verificando tal requisito, a transmissão do estabelecimento e do direito de propriedade sobre o imóvel não se contém no conceito jurídico dessa figura, pelo que não está, em consequência, tipificado na verba 27.1 da tabela geral do IS, e não é por isso sujeito a este imposto[1].

Esta posição não é porém pacífica, existindo doutrina e até jurisprudência que defende a existência jurídica de um estabelecimento comercial, e em consequência a possibilidade da sua transmissão onerosa, independentemente da ligação que possa existir a determinado imóvel.

Antes de mais, existe um argumento de ordem sistemática que não deve ser desconsiderado, e que consiste no texto da epígrafe da verba 27. da tabela geral do IS, que se refere a “transferências onerosas de actividades ou de exploração de serviços”, o que parece indiciar a sujeição a IS das transmissões de estabelecimentos quer as mesmas ocorram em simultâneo com a transferência do direito ao arrendamento, quer em conjunto com a transferência do direito de propriedade sobre o imóvel onde o mesmo está instalado, desde que estejamos em presença de uma transferência onerosa.

Por outro lado, poderá sustentar-se que o conceito jurídico de trespasse não se esgota na interpretação do citado art.º 1112º do Código Civil. Na realidade, e por se incluir no âmbito do regime do arrendamento, naquela disposição a transmissão do direito ao arrendamento surge como intrinsecamente ligada ao trespasse. Porém, a transmissão do estabelecimento em conjunto com a transmissão de qualquer outra figura que faculte ao adquirente o gozo do espaço em que o estabelecimento está instalado, nomeadamente do direito de propriedade, pode também reconduzir-se ao conceito de trespasse. De facto, poder-se-á conceber a figura do trespasse independentemente de qualquer ligação a um prédio arrendado ou sequer a um determinado prédio. Em última análise, podemos imaginar situações em que determinado negócio seja transmitido como um todo, incluindo equipamentos, mercadorias, clientela, etc, para ser posteriormente instalado em outro espaço físico, sendo por isso defensável que não deixa por esse motivo de configurar um trespasse.

Assim, a transferência onerosa de um estabelecimento acompanhada da transmissão do direito de propriedade do prédio onde o estabelecimento está instalado poderá ainda ser um trespasse, sendo por essa via sujeito a IS, pelo menos no que respeita à parte do preço que seja atribuído ao negócio propriamente dito.

Questão diversa é a de saber, nestes casos, qual seria o valor a atender para efeitos de sujeição a IS. Supondo a transmissão de um estabelecimento em conjunto com a propriedade do imóvel em que o mesmo está instalado, surge a questão de saber se a totalidade do preço (ou apenas parte dele) seria sujeita a IS.

Responder a esta pergunta implicaria determinar se o imóvel é ele próprio um elemento do integrante do estabelecimento transmitido, ou se é antes autónomo deste e apenas transmitido em simultâneo com o mesmo.

A primeira alternativa (imóvel como elemento do estabelecimento) levaria à tributação da totalidade do preço em IS (pelo trespasse), e da parte do preço correspondente à aquisição do imóvel em IMT.

Na segunda hipótese atribuem-se necessariamente valores diferentes à aquisição do imóvel e à aquisição do trespasse, sendo aquela sujeita apenas a IMT e esta apenas a IS, sobre os respectivos valores.

Nesta matéria, parecem existir bons argumentos em favor desta última posição. Desde logo, é o próprio legislador que afirma, no preâmbulo do Código do IS, que, ao excluir de tributação em IMT as subconcessões e trespasses de concessões feitas pelo Estado ou entidades públicas para exploração de empresas ou serviços e sujeitá-las a IS, passa a sujeitar igualmente a esse imposto os trespasses não efectuados pelo Estado “por razões de equidade e uniformidade”. Ora, as mesmas razões devem evitar que um trespasse acompanhado da transmissão da propriedade seja simultaneamente tributado em IMT e em IS.

Efectivamente, se um trespasse de concessão efectuado pelo Estado deixou de estar sujeito a IMT (uma vez que estava anteriormente sujeito a SISA) e passou a estar sujeito a IS; então quer este quer qualquer outro tipo de trespasse (ainda que efectuado em simultâneo com a transmissão do direito de propriedade) não deve, por uma questão de equidade, ser sujeito a ambos os impostos no que respeita ao valor do imóvel.

Acresce que em todas as situações em que o estabelecimento e o direito de propriedade sobre o imóvel sejam transmitidos a pessoas diferentes ou em diferentes momentos no tempo, a primeira transmissão referida será exclusivamente sujeita a IS e a última exclusivamente sujeita a IMT. Assim, não seria coerente que quando o adquirente das duas realidades coincida na pessoa e no tempo seja por isso penalizado, vendo-se obrigado a suportar os dois tributos no que respeita ao valor do imóvel, originando uma dupla tributação económica totalmente injustificada.

Uma tal interpretação conduziria por isso a um tratamento desigual e desproporcional, do ponto de vista da tributação, entre um adquirente do estabelecimento com o direito ao arrendamento e a um adquirente do mesmo estabelecimento com o direito à propriedade. Embora um e outro adquiram realidades diferentes, o estabelecimento é um só, e enquanto o primeiro suporta IS apenas sobre o valor do trespasse,  o segundo suportaria IS sobre o valor do trespasse e o valor do imóvel, tendo ainda o encargo do IMT sobre o valor do mesmo imóvel.

Por todo o exposto, e embora tendamos para restringir o conceito de trespasse aos casos em que exista transmissão da posição de arrendatário, esta questão não resulta claramente esclarecida do texto da lei, pelo que seria de toda a utilidade, desde logo, a sua clarificação pelo legislador, ou pelo menos a pronúncia da Administração Fiscal sobre esta matéria.


[1] Cf.  “Os impostos sobre o património imobiliário / O Imposto do Selo - Anotados e Comentados” - J. Silvério Mateus e L. Corvelo de Freitas, Engifisco, 1ª Edição, 2005, pgs 770 e ss

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