A polémica em torno da inclusão do ISV na base tributável do IVA
2011 Revista da Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas, n.º 132
Na sequência da publicação da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril - Lei do Orçamento de Estado para 2010 (“Lei do OE2010”) -, foi conferida uma autorização legislativa ao Governo para eliminar a incidência do Imposto sobre o Valor Acrescentado (“IVA”) sobre o Imposto Sobre Veículos (“ISV”), no âmbito da qual se previu, como contrapartida, um aumento deste último imposto por forma a evitar perda de receita.
Efectivamente, as associações ligadas ao sector automóvel há muito que exigiam o fim da inclusão na base tributável do IVA do ISV, qualificando tal procedimento como uma inadmissível “dupla tributação”. A polémica subiu de tom com a publicação de um acórdão, do Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”), sobre situação comparável na Dinamarca.
De referir, contudo, que a autorização legislativa concedida na Lei do OE2010 não foi utilizada pelo Governo até ao termo do ano económico a que respeitava, pelo que caducou.
Com o presente artigo, pretendemos resumir, brevemente, a questão referida e esclarecer o impacto que a entrada em vigor das alterações constantes da autorização legislativa referida teriam nos contratos de locação de veículos automóveis.
I. Liquidação do IVA sobre o ISV
Nos termos do artigo 5º do Código do ISV, “constitui facto gerador de imposto o fabrico, montagem, admissão ou importação dos veículos tributáveis em território nacional que estejam obrigados à matrícula em Portugal”.
De acordo com a alínea a) do n.º 5 do artigo 16º do Código do IVA, “o valor tributável das transmissões de bens e das prestações de serviços sujeitas a imposto inclui (...) os impostos, direitos, taxas e outras imposições, com excepção do próprio imposto sobre o valor acrescentado”. Esta disposição baseia-se no artigo 78º da Directiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de Novembro de 2006 (“Directiva do IVA”) (anteriormente, alínea c) do n.º 2 do artigo 11º da Directiva 77/388/CEE, do Conselho de 17 de Maio de 1977 (denominada de “Sexta Directiva”).
É, pois, com base nas disposições supra referidas, que o IVA tem vindo a ser liquidado - por parte dos vendedores de veículos automóveis - sobre o preço de venda, adicionado do respectivo ISV (suportado pelos vendedores em nome e por conta dos clientes e repercutido na respectiva factura de venda).
II. O Acórdão proferido no processo C-98/05 do Tribunal de Justiça da União Europeia e a posição da Comissão Europeia relativamente ao caso português
O TJUE considerou, no caso C-98/08 (relativo à Dinamarca), que quando um distribuidor entrega ao cliente um automóvel, já matriculado, por um preço que englobe o imposto de matrícula sobre veículos automóveis novos que pagou antes dessa entrega, esse mesmo imposto, cujo facto gerador não reside na referida entrega, mas na primeira matrícula do veículo em território nacional, não está incluído no conceito de “impostos, direitos aduaneiros, taxas e demais encargos” referidos na Sexta Directiva.
Entendeu o TJUE que o imposto de matrícula correspondia, naquele caso, ao montante que o vendedor recebeu do adquirente do veículo, a título de reembolso das despesas efectuadas em nome e por conta deste.
Considerando que a alínea c) do n.º 2 do artigo 11º da Sexta Directiva (correspondente ao actual artigo 79º da Directiva do IVA) determinava que o valor tributável não incluía as “quantias que um sujeito passivo receba do adquirente ou do destinatário, a título de reembolso de despesas efectuadas em nome e por conta destes últimos”, decidiu o TJUE que o valor tributável do IVA não poderia incluir as despesas relativas ao imposto sobre matrícula.
Em conclusão, considerou o TJUE, naquele processo, que a inclusão da despesa com o imposto de matrícula na base tributável do IVA constituía uma infracção à Sexta Directiva (actualmente, Directiva do IVA).
Ora, com base no entendimento do TJUE, a Comissão Europeia, considerou que, em Portugal, a liquidação de IVA sobre o montante do ISV contraria o disposto na Directiva do IVA, tendo, em consequência, intimado o Estado Português a corrigir a legislação.
De referir que o Estado Português não admitiu, até hoje, a desconformidade da legislação nacional com o direito comunitário. Contudo, na Lei do OE2010, foi conferida uma autorização legislativa ao Governo para eliminar a incidência de IVA sobre o ISV (prevendo-se, ali, um aumento do ISV, por forma a evitar perda de receita)
Ora, é nosso entendimento que no caso português, à semelhança do caso dinamarquês, está em causa um imposto pago pelo vendedor em nome e por conta do adquirente, em momento anterior à venda do veículo automóvel. Assim, suportando o vendedor o ISV em nome e por conta do adquirente, em momento anterior ao da venda, trata-se, efectivamente, de uma despesa que é repercutida na factura e que não poderá integrar a base tributável do imposto, conforme resulta, claramente, da alínea c) do n.º 79º da Directiva do IVA.
Em face do exposto, entendemos existirem argumentos relevantes - e que vieram a ser reforçados com a autorização legislativa referida, apesar da sua caducidade - para contestar e requerer a restituição dos montantes de IVA liquidados sobre o ISV. Tal poderá ser efectuado pelo recurso à via administrativa, através da apresentação de uma reclamação graciosa ou pedido de revisão oficiosa, ou pela via judicial, com a apresentação de uma impugnação judicial.
III. Contratos de locação de veículos automóveis
Não obstante o referido, quanto às aquisições directas de veículos automóveis, somos de opinião de que tal não tem aplicação nos contratos de locação, sendo que as alterações previstas na autorização legislativa penalizariam os consumidores finais dos contratos de locação.
Na verdade, nos termos da alínea a) do n.º 2 do artigo 21º do Código do IVA, as locadoras, enquanto entidades cuja venda ou a exploração de veículos automóveis constitui objecto de actividade, podem deduzir a totalidade do IVA que suportam. Por conseguinte, a parte do IVA liquidado na aquisição de veículos automóveis incidente sobre o respectivo ISV é integralmente dedutível.
Quanto aos montantes cobrados aos clientes, no âmbito de contratos de locação, e que estão sujeitos a IVA, os mesmos resultam da realização de uma prestação de serviços (i.e. a locação) e, nos casos de exercício de opção de compra, resultam de uma venda no final do contrato, tudo operações sujeitas a IVA.
Notamos a este propósito que o ISV pago pelas locadoras não o é em nome e por conta dos clientes. Na verdade, as locadoras adquirem as viaturas em nome próprio, suportando os impostos necessários à legalização da viatura (podendo, como referido, deduzir a totalidade do IVA suportado). Posteriormente, celebram os contratos de locação com os seus clientes, acordando o preço das rendas e, nos casos de opção de compra, o valor residual a suportar pelo cliente no final do contrato. As locadoras não efectuam a repercussão do ISV nas facturas (muito embora se admita, naturalmente, que o ISV influencie o preço).
Ora, do exposto, em particular do regime do IVA das locadoras, resultam duas importantes consequências:
A primeira é a de que, contrariamente ao que sucede na aquisição directa de veículos automóveis, nas quais os vendedores pagam o ISV, em nome e por conta do cliente, e o repercutem na factura, entendemos que nos contratos de locação não se poderá falar na incidência de IVA sobre ISV, não sendo possível, assim, recuperar IVA.
A segunda é a de que o aumento do ISV, por substituição da eliminação da incidência do IVA sobre o ISV - tal como previsto na autorização legislativa referida - terá um impacto negativo no negócio das locadoras, na medida em que o ISV não é dedutível, contrariamente ao IVA. Nestes termos, a solução preconizada apenas vem aumentar o custo para os consumidores finais nos casos dos contratos de locação de automóveis.
Ora, tendo caducado a autorização legislativa referia, resta-nos esperar por uma outra que, por um lado, venha alinhar a legislação nacional com o direito comunitário e, por outro lado, tenha em atenção as consequências de um aumento sem mais do ISV.